O que foi Cimeira de Cancún?

Historieta pedagógica para compreender o que é a Organização Mundial de Comércio

por Miguel Ardanaz Ibáñez

Enfrentamento em Cancún. Imagine que um dia vai ao mercado e começa a apreciar os preços na frutaria. Dá-se conta com surpresa que agora fazem as etiquetas de forma diferente. Um exemplo: Laranjas - 2,5 euros por quilo, se forem para a senhora Engrácia, 5 euros por quilo, se forem para a senhora Maria.

Decerto que a senhora Maria, vai logo perguntar ao vendedor a que se deve essa diferença. Ele olha-a com cara de surpresa e responde-lhe, com um gesto que significa "toda a gente sabe": São as normas. Introduzimos essas normas, e há que as cumprir...

Como não tem outra escolha, a senhora Maria decide seguir as normas, que não só afectam as laranjas, como todos os outros produtos do mercado.

E além disso, não é a única norma. Há outras, como: quando a senhora Engrácia quiser laranjas da senhora Maria, poderá ficar com elas, ao preço mais baixo. No caso contrário, se a senhora Maria quiser as da senhora Engrácia, poderá comprá-las, mas pagando um preço dez vezes mais alto.

Outra norma curiosa é a seguinte: se a senhora Maria deixar algum lixo no mercado, será detida levada a tribunal. Além disso, os preços de tudo se lhe multiplicarão por três. Se for a senhora Engrácia, será repreendida e o seu descuido esquecido.

A senhora Engrácia é a pessoa mais rica do bairro. À medida que o tempo passa, a sua riqueza aumenta. E a senhora Maria cada vez fica mais pobre. A senhora Engrácia, de vez em quando, dá uma laranjita à senhora Maria para lhe mostrar a sua solidariedade. Nessas ocasiões, os vizinhos elogiam a generosidade da D. Engrácia, e para a felicitarem, oferecem-lhe presentes, como cestas e sacos com quilos de laranjas.

No bairro, as pessoas deram-se conta que a senhora Maria está a atingir a indigência. De vez em quando, levam-lhe café e umas bolachas. Outras vão-lhe fazer companhia e compadecem-se dela. Há no bairro quem se lamente da sua situação, mas que também lembra que ela cometeu muitos erros. Escolheu o marido errado, que era um bêbado. Não soube administrar lá muito bem o seu dinheiro. E passa tempo demais a pensar em dançar e cantar, que é uma das suas paixões.

Um dia, enquanto comia uma bolacha, a senhora Maria pensou em voz alta: E se mudassem essas normas...

A história da senhora Maria e da senhora Engrácia, com as cambiantes que forem precisas, dá-se hoje entre os diferentes países do mundo. Essa é a principal razão que, nos últimos anos, tem levado milhares de pessoas a fazer longuíssimas viagens a diferentes partes do mundo, para exigir a mudança das regras do comércio mundial.

O momento mais conhecido de toda esta história foi em 1999, quando centenas de milhares de pessoas se deslocaram a Seattle, na costa oeste norte-americana, para estar presentes na conferência inter-ministerial que a Organização Mundial do Comércio ia a realizar nessa cidade. A reunido não chegou a ter praticamente lugar, devido aos incidentes ocorridos nas ruas da cidade. As páginas de abertura dos telejornais mostraram como "vândalos do movimento anti-globalização" tinham partido montras, destruído mobiliário urbano... e criado o caos na cidade.

Perante a novidade, as inexactidões eram muito grandes. Uma das mais importantes características da gente que foi a Seattle era que apenas estavam de acordo no seu pedido para mudar as normas. No resto eram tão parecidos como o dia e a noite. Entre eles havia vândalos, evidentemente. Mas que eram uma minoria. O problema é que é mais apelativo para as notícias, vinte pessoas partindo montras e atirando pedras à policia, que cem mil pessoas manifestando-se por uma justiça global. Quando os manifestantes se encontram com estas pessoas, por natureza própria apenas as podem censurar com a palavra. O contrário seria usar as suas próprias armas. E isso não.

Por último, deve-se acentuar que estas gentes não estão contra a globalização. Esta é inevitável. Com os seus aspectos positivos e negativos. A sua reivindicação é que esta seja feita de outra forma, para assim potenciar os aspectos positivos e minorar os negativos. Por isso, a designação de anti-globalização é outra etiqueta externa longe da realidade. Foram propostos outros: anti-lobalização, fazendo referência ao tipo de globalização actual (como lobos...); solidarização, propondo o estilo de outra globalização (na base da solidariedade); ou ultimamente foi proposto alter-globalização, que significa "outra globalização" com raiz latina.

Outro dos actores nesta história é a já mencionada Organização Mundial do Comércio (OMC a partir de agora, em inglês WTO). A verdade é que se trata de uma organização bastante recente. Nasceu em 1995. A ela pertencem a maioria dos países do mundo, ainda que nem todos, porque há que cumprir normas bastante estritas quando se para lá entra. O último associado "estrela" foi a China. Além do mais, quando te fazes sócio deste "clube", já não há marcha atrás. Quando entras já não podes sair.

A OMC é a herdeira do que se chamava GATT, um acordo entre muitos países para gerir os intercâmbios comerciais entre uns e outros. Este acordo começou depois da segunda guerra mundial, consubstanciando as ideias económicas dum economista muito famoso naquela época: Keynes. Este achava muito importante que houvesse uma certa intervenção do Estado que corrigisse os desequilíbrios do sistema de mercado (que é como se organizam hoje todos os intercâmbios). Para isso, propôs que também houvesse algo como um governo mundial, que se encarregaria destas correcções, para o que propôs a criação de três organizações. Algumas soam conhecidas: o Fundo Monetário Internacional [1] (FMI), o Banco Mundial [2] (BM) e a Organização Mundial do Comércio.

As duas primeiras foram logo postas de pé, e por assim dizer, são já "cinquentonas"; mas a OMC precisou de cinquenta anos para se poder criar. Entretanto, funcionou isso a que chamamos o GATT.

A OMC é, em teoria, a organização internacional mais democrática do mundo. Cada país dispõe aí de um voto. Não é como no Banco Mundial, onde se utiliza o que se chama o "sistema de cadeiras": este possibilita que o voto dos Estados Unidos valha mais dez vezes que o voto de Espanha, ou o do Japão o dobro do da China, ou o de França ou da Alemanha o triplo do da Índia ou do Brasil. O dinheiro manda.

O sistema da OMC é inclusive mais perfeito que o das Nações Unidas, onde cada país tem um voto, mas onde existe um Conselho de Segurança onde há países com direito de veto e lugares permanentes. Qual é então o problema? Na OMC nunca se vota, e assim nada interessa que cada país tenha um voto. Utiliza-se o que se chama o "sistema de consenso". Tomar todas as decisões por consenso é algo que à primeira vista soa muito bem. Mas vejamos como isto é feito: Primeiro, o que se denomina o quadrado (EUA, União Europeia, Japão e Canadá) chega a um acordo; em seguida, este é proposto a umas quantas nações mais poderosas que não integram o quadrado (Índia, Brasil ou Indonésia, por exemplo) em reuniões "mini-ministeriais" para as quais não são convidados todos os Estados. Uma vez que se chegue a um acordo, o círculo amplia-se, e finalmente leva-se o acordo ao plenário da OMC, onde é aprovado. Normalmente, a redacção original feita pelo quadrado é muito semelhante à que é aprovada no final, com muito poucas modificações.

Além disto, nestas "mini-negociações" as pressões dos países do Norte sobre o Sul são muito fortes, assim como as das multinacionais.

Outro problema destes consensos é que necessitam de uma quantidade tremenda de reuniões. Em 2002 realizaram-se 5224 reuniões! em diferentes países. Isto também necessita de uma enorme quantidade de funcionários. Tudo isto é impossível para os países do terceiro mundo. Na reunião inter-ministerial de Doha, o Haiti não pode mandar nenhum delegado, enquanto os Estados Unidos mandaram mais de quinhentos.

O momento central da vida da OMC são as cimeiras Inter-ministeriais, onde, como o seu nome indica, se juntam os ministros da economia dos países membros. Até agora houve quatro: Singapura (1997), Seattle (1999), Doha (2001) e a última realizada em 2003 em Cancún, no México.

A última reunião, tal como a de Seattle, foi um completo fracasso. A que se deveu este fracasso? De maneira geral, podemos dizer que a segunda parte do consenso não funcionou, ou seja, quando os países do quadrado falaram com aqueles outros que não fazem parte dele, o acordo não resultou. Desta vez, formaram um grupo, que a Imprensa chamava o G-22, onde estavam países como a Argentina, a China, a Índia, a África do Sul, o Brasil. Estes denunciaram que a "agenda" da OMC só beneficiava os países desenvolvidos.

Que "agenda" é esta?

É complexa e difícil de descrever em toda a sua extensão. Darei apenas algumas pistas.

Um dos seus pontos centrais é a questão da agricultura. Os governos dos países do Norte gastam actualmente mais de mil milhões de euros por dia em subsídios à agricultura. Seis vezes mais que a ajuda ao desenvolvimento que estes mesmos países atribuem. Isto torna impossível a existência de um comércio normal entre os países. Se você for agricultor, pensará: — era o que me faltava, que me tirassem a subvenção. Mas não é disso que se trata. As ONGs protestam, não contra as subvenções aos pequenos e médios agricultores da Europa e dos Estados Unidos, mas sim por estas ajudas serem dadas às grandes empresas agrícolas que não necessitam delas. Intermón mostrou um exemplo muito claro: uma única plantação algodoeira no Arkansas recebeu em subvenções da administração americana o equivalente aos rendimentos de 25 mil agricultores do Mali.

Outro tema importante é o das patentes. É possível privatizar algo que pode salvar a vida das pessoas? É evidente que as descobertas científicas devem ter um período de exclusividade, para que os investimentos das empresas sejam cobertos. Mas em alguns casos, isto não pode funcionar assim. Um destes casos é o dos medicamentos. E sobretudo o dos medicamentos de que dependem vidas. Medicamentos para a SIDA ou para a malária são um exemplo. Estes atingem preços incomportáveis para qualquer cidadão do Sul. Na anterior cimeira de Doha chegou-se a um acordo sobre isto. Mas, uma vez mais, os acordos ficaram por cumprir. Um último tema poderia ser o dos impostos ligados às exportações, um tema que está relacionado com os anteriores. É curioso que no comércio internacional ocorre justamente o contrário que entre nós. Nos nossos países, os impostos estão ligados ao rendimento. Quanto mais dinheiro tens ou ganhas, mais impostos pagas. No comércio internacional, assombrosamente, passa-se o contrário. Os mais pobres pagam mais. Por exemplo, os impostos que paga o Bangladesh ao exportar para os EUA são catorze vezes superiores aos que tem de pagar a França, apesar de os rendimentos médios em França serem catorze vezes os do Bangladesh.

Estes, e outros muitos temas constituíram o centro das negociações. O acordo tornou-se impossível. Uma vez mais, a agenda voltava a beneficiar os ricos. E desta vez alguns estrilaram. O certo é que a situação é crítica. O que havia a fazer era melhorar o acordo e simplesmente apenas piorou.

Segundo escrevia um jornalista norte-americano em princípios deste século, o planeta tem neste momento duas superpotências: os Estados Unidos e a opinião pública mundial. Depende de todos nós que esta última tenha um papel decisivo.

Notas
[1] A tarefa do FMI, por exemplo, consistia em assegurar que em períodos de declínio económico, como o registado no período entre guerras, os países não tentassem resolver os seus problemas por meio de uma política de comércio proteccionista face às importações e ao aumento das próprias exportações, desvalorizando as moedas nacionais para tornar mais competitivos os seus produtos face aos de países terceiros. O FMI emprestaria dinheiro aos países com dificuldades nas suas balanças de pagamentos, na condição de os seus governos adoptarem medidas internas para melhorar a sua competitividade, tais como a redução de custos de produção, através de cortes nos salários, a redução dos gastos governamentais, cortando nas despesas sociais, etc.

[2] Este organismo nasceu com o objectivo de facilitar o financiamento para a realização dos grandes projectos de infraestruturas necessárias à promoção do desenvolvimento industrial e dos intercâmbios comerciais. Após ter financiado a reconstrução da Europa, depois da II Guerra Mundial, o BM actua hoje quase exclusivamente nos países do Sul. De acordo com o seu último relatório anual, na actualidade o Banco concede créditos anuais no valor de 23 mil milhões de dólares.


O original encontra-se em http://www.rebelion.org/economia/040107ardanaz.htm .
Tradução de Carlos Coutinho.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

20/Jan/04