Incumprimento técnico ou sentença de morte para a economia
ucraniana?
por Valentin Katasonov
[*]
A situação na Ucrânia levava a isto desde há muito
e finalmente aconteceu. Em 23 de Setembro foi formalmente registado um
incumprimento no dia em que o Comité Europeu da International
Swaps and Derivatives Association (
ISDA
) adoptou a
resolução
sobre a Ucrânia confirmando o incumprimento técnico do
país.
Sentenças semelhantes foram emitidas por um certo
número de agências de classificação. A agência
Standard & Poor's, por exemplo,
declarou
que a Ucrânia estava em incumprimento selectivo
(selective default, SD)
pelas suas dívidas em divisas estrangeiras depois de emitir uma
declaração de que nos últimos dez dias de Setembro podia
degradar a classificação de crédito da Ucrânia para
"D" um incumprimento total.
A ISDA é uma
organização não-governamental internacional estabelecida
em 1985 e tem a sua sede em Nova York. Ela agrupa os maiores actores do mercado
financeiro global bancos e fundos. O comité permanente da
associação é constituído por 15 gigantes globais
Bank of America, BNP Paribas, Deutsche Bank, Goldman Sachs, JPMorgan
Chase Bank, Morgan Stanley & Co. International e outros. Todos os 15 votaram
unanimemente pela resolução sobre a Ucrânia. A
decisão dos gigantes da indústria financeira global era uma
reacção pronta a disparar ao
Decreto do Governo Nº 978-p
assinado por Yatsnyuk em 22 de Setembro impondo uma moratória sobre o
reembolso de US$500 milhões de dívida em Eurobonds que vencia em
23 de Setembro. A moratória foi considerada ser um incumprimento
técnico das suas obrigações externas.
Não está muito claro, contudo, porque a ISDA está a
referir-se à moratória ucraniana como um incumprimento
técnico. Na prática internacional, um tal incumprimento é
habitualmente encarado como a falha de um país em cumprir suas
obrigações externas, a qual é acordada com os credores.
Por vezes também é tratado como incumprimento técnico o
atraso de um devedor no pagamento de dinheiro do serviço e do reembolso
da dívida.
Poderá estar a perguntar-se: mas Kiev não
acordou a reestruturação da sua dívida soberana
com os credores? Afinal de contas, esta reestruturação fora
alegremente
anunciada
em Agosto pelo primeiro-ministro Arseniy Yatsenyuk e a ministra das
Finanças Natalie Jaresko. Portanto, suas declarações
não valem absolutamente nada. De acordo com a prática e costumes
internacionais, considera-se ter havido reestruturação de
dívida se esta foi acordada por possuidores de dívida
responsáveis por pelo menos 75 por cento das dívidas totais
exigidas ao valor facial. Com a chamada reestruturação da
dívida externa soberana da Ucrânia, esta condição
não foi cumprida (de acordo com as minhas próprias estimativas,
foi alcançado um acordo só para aproximadamente metade da
dívida). Kiev decidiu ignorar muitos importantes possuidores de
Eurobonds ucranianos, aparentemente esperando que Washington, como
patrão da junta de Kiev, pressionasse os detentores independentes de
títulos ucranianos.
Os acontecimentos desenvolveram-se assim. O
reembolso de passivos correntes no montante de US$500 milhões não
aconteceu na data final dada a Kiev. Em 2 de Outubro, o último dia de
negócios antes do decreto do governo de Yatsenyuk respeitante à
sua recusa em pagar suas dívidas entrar em vigor, a ISDA, por
trás das portas, chegou à
decisão final
de reconhecer a Ucrânia como estando em incumprimento técnico
quanto aos seus activos em causa. Isto tornou-se conhecido em 3 de Outubro. A
decisão do comité permanente da ISDA foi oficialmente tornada
pública na segunda-feira 5 de Outubro.
A associação
continua a actuar claramente e firmemente, uma vez que a moratória do
governo ucraniano tem um impacto directo sobre os interesses dos seus membros.
A única suavização no fraseado da resolução
da ISDA foi chamar a isto um incumprimento "técnico". Na
realidade dos factos, foi um incumprimento pleno. O véu proporcionado
pela palavra "técnico" logo será removido e os credores
começarão uma batalha cruel para a satisfação das
suas exigências sobre a Ucrânia.
O incumprimento poderia resultar
em graves perdas para alguns membros da ISDA não por serem detentores de
Eurobons emitidos pelo governo ucraniano, mas porque venderam a estes
detentores credit default swaps (CDS). O JPMorgan Chase Bank, por exemplo,
comercia activamente nesta espécie de negócios. Os
proprietários deste banco estão ainda mais receosos de um
incumprimento da Ucrânia do que Yatsenyuk e Jaresko. O banco foi obrigado
a votar a favor do reconhecimento de um incumprimento na Ucrânia,
concordando portanto com o facto de que teria de pagar
compensações consideráveis aos detentores de Eurobonds
ucranianos. A seguir, o JPMorgan Chase Bank começará a arrancar a
pele da Ucrânia. É claro que outros membros da ISDA também
tomarão parte nisto.
É difícil dizer quais prestamistas
mundiais terão os dentes mais aguçados quando eles dilacerarem o
que resta da Ucrânia, mas penso que os mais ávidos neste conjunto
de prestamistas serão os fundos de investimento que compram a outras
companhias títulos de dívidas de vários governos por quase
nada e então começam a exigir que os governos emitentes os paguem
pelo seu valor facial. Os abutres financeiros são famosos por saberem
como romper acordos de reestruturação de dívida soberana.
Isto é exactamente o que fizeram com a Argentina, a qual conseguiu
executar duas reestruturações na última década com
grande dificuldade, o que lhe permitiu reduzir sua dívida soberana em
aproximadamente US$100 mil milhões.
O fundo americano Franklin
Templeton comprou intensamente Eurobonds ucranianos a outras companhias e este
fundo estava no centro do grupo de credores que manteve
conversações com o governo ucraniano sobre a
reestruturação da sua dívida. No arranque das
negociações, havia US$7,6 mil milhões de Eurobonds
ucranianos na pasta do fundo. Alguns ficaram confusos: como era possível
que o lobo se houvesse tornado um cordeiro? Foi esta a metamorfose anunciada
por Kiev quando informou que a reestruturação estava alegadamente
executada com êxito e que a dívida da Ucrânia fora reduzida
em 20 por cento.
Mas é tudo um logro. Washington tem feito grandes
esforços para tentar e forçar credores da Ucrânia a fazerem
concessões mútuas. Mais especificamente, a Casa Branca tem
trabalhado com a holding financeira
BlackRock Inc
. Ém termos de activos controlados (US$4,77 milhões de
milhões), é a maior corporação financeira da
América e possivelmente do mundo. A US Treasury Securities (o antigo
secretário do Tesouro Lawrence Summers e o actual secretário do
Tesouro Jacob Lew), a presidente da Junta de Governadores do Federal Reserve
System Janet Yellen e outras personalidades importantes têm todos
ligações com a BlackRock. Por sua vez, a BlackRock é
accionista do fundo Franklin Templeton já mencionado.
Em suma, a Casa
Branca pressiona a BlackRock, a BlackRock pressiona a Franklin Templeton e a
Franklin Templeton cedeu e concordou com a reestruturação da
dívida. Contudo, a Casa Branca deixou de perceber o que vinha a seguir.
Primeiramente, a Casa Branca não tem quaisquer ligações a
muitos dos detentores de títulos de dívida ucranianos, de modo
que deixou de listar os 75 por cento exigidos para a
reestruturação ser reconhecida como legítima. Em segundo
lugar, a BlackRock e a Franklin Templeton só fingiram lealdade à
Casa Branca. Os interesses egoístas dos abutres financeiros sempre
prevalecem e eles estão muito menos interessados em política, se
é que têm algum interesse.
Segundo algumas fontes, a Franklin
Templeton deu Eurobonds ucranianos aos hedge funds Aurelius e Elliott enquanto
as conversações estavam em curso entre Kiev e seus credores. Eles
caíram foram do controle efectivo da Casa Branca e tencionam espremer a
Ucrânia até o bagaço. De modo análogo ao que fizeram
e ainda fazem à Argentina. Estes fundos são chamados
"cobradores internacionais independentes"
("independent international collectors")
e seus serviços são utilizados por um certo número de
bancos e fundos respeitáveis que não desejam estragar a sua
reputação, mas ao mesmo tempo querem extrair tanto dinheiro
quanto possível dos seus devedores. Todo o negócio com a
"reestruturação" da dívida da Ucrânia
mostra mais uma vez que a administração dos EUA não tem
controle sobre a situação financeira na Ucrânia. É
um dos pontos fracos extremamente sensíveis de Washington.
Transferir
exigências de dívida para as mãos de "cobradores
internacionais independentes" é uma ameaça ainda maior para
a própria Ucrânia. Credores estrangeiros estão prestes a
começar seu saqueio desenfreado. As consequências disto poderiam
ser desastrosas. Kiev está a tentar encerrar a fronteira do país
para travar a saída de capital, mas dada a actual
corrupção desenfreada é improvável que isto
funcione. Na melhor das hipóteses, as contas em divisas estrangeiras de
indivíduos e empresas serão congeladas e na pior eles
terão suas divisas confiscadas. Os últimos atributos formais de
soberania poderiam ser eliminados. O governo ucraniano poderia ser
substituído por alguma espécie de
"administração temporária" consistente de
representantes dos credores principais (semelhante à
nomeação de uma administração temporária num
banco quando este está a declarar bancarrota). As exigências
serão satisfeitas pela privatização do que resta da
propriedade possuída pelo estado.
Contudo, não há
razão para esperar muito da privatização. Os credores
voltarão sua atenção para a recuperação de
activos externos da Ucrânia, primariamente activos possuídos pelo
estado. A atitude do Ocidente para com a Ucrânia poderia mudar
dramaticamente. Tribunais estrangeiros carimbarão decisões sobre
o confisco de activos ucranianos a favor de credores e, quando os activos
externos do governo estiverem esgotados, eles começarão com os
activos privados, isto é, aqueles que os oligarcas ucranianos roubaram
durante os anos de "reformas" e retiraram para fora do país.
Assim, o anúncio da ISDA quanto aos "incumprimento
técnico" da Ucrânia é una pista para os abutres
financeiros
e outros magnatas da indústria financeira começarem a despojar o
país dos seus activos. Salvo um milagre, a economia ucraniana pode
ser completamente destruída.
10/Outubro/2015
[*]
Economista, presidente da S.F. Sharapov Russian Economic Society.
O original encontra-se em
www.strategic-culture.org/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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