Propriedade pública e socialismo
Há décadas atrás constava de certo programa
político "a devolução à nação
dos grandes meios de produção monopolizada, fruto do trabalho
comum, das fontes de energia, das riquezas do subsolo, das companhias de
seguros e dos grandes bancos".
[1]
Tal programa não era o de nenhuma organização comunista,
de nenhuma formação política da extrema-esquerda, de
nenhum partido revolucionário: era o Programa do Conselho
Nacional da
Resistência Francesa, aprovado em assembleia plenária de 15 de
Março de 1944, às vésperas da Libertação.
Contou com o voto unânime dos resistentes comunistas, gaullistas, e
monárquicos. Não consta que, em consequência dele, tenha
vigorado em França a ditadura do proletariado.
Vem esta consideração a propósito da releitura, que fiz
recentemente do artigo
A natureza de classe do chamado Estado social
de Alexandrino Saldanha
[2]
. Recuperando o essencial do pensamento marxista sobre o Estado enquanto
utensílio forjado pela classe dominante para a auxiliar na
exploração dos trabalhadores, conclui que o Estado social
é um Estado burguês que "foi obrigado pela
relação política de forças, a nível interno
e externo, a fazer cedências à classe operária e aos
trabalhadores. Isto é, o Estado social é uma ditadura da
burguesia com uma relação de forças que lhe é em
grande medida desfavorável; e que, perante a relação de
forças antagónica entre o trabalho e o capital e em determinadas
condições de desenvolvimento das forças produtivas, teve
de dar melhores salários e mais direitos aos trabalhadores".
Esta ideia tem elevada relevância para o correcto posicionamento dos
marxistas perante o Estado social: o da compreensão de que este
constitui uma expressão da correlação de forças
desfavorável à burguesia numa determinada conjuntura
histórica, determinante de concessões em matéria de
remuneração do trabalho. O autor não deixa, no entanto, de
fazer notar que essa concessão tem dois aspectos crucialmente
desfavoráveis aos trabalhadores: por um lado, intimamente
relacionado
com a correlação de forças (sempre tensa, e sempre em
alteração), a existência do Estado social é por
definição conjuntural e dependente de um somatório de
condições político-sociais, nem todas passíveis de
serem influenciadas ou determinadas pelos trabalhadores; por outro, detido e
aplicado pelo Estado burguês
[3]
, o Estado social insere-se numa esfera inalcançável para o
proletariado, o qual, em circunstância nenhuma, pode tomar esse Estado
para si (e quando o logrou, no Irão de Mossadeqh, no Chile de Salvador
Allende, nas Honduras de Manuel Zelaya, etc., foi prontamente expulso pelo
aparelho repressivo), e muito menos utilizá-lo em seu proveito. Sendo
que, aliás, e permitimo-nos acrescentar, a integração
desse conjunto de concessões no Estado burguês monta uma armadilha
de dificílima resolução aos revolucionários, que
assim se vêem constrangidos a uma defesa de determinados aspectos do
Estado burguês e não de outros, dificultando, com isso, a
compreensão pelas massas do aparelho de Estado burguês, no seu
todo, como um instrumento da dominação
[4]
.
Assim sendo, é cientes da natureza de classe do Estado que devemos fazer
a análise da citação do Programa do Conselho Nacional da
Resistência. E cedo verificamos quão instrutivo esse documento
é para entender a afirmação, mil vezes glosada mas muito
pouco entendida, de Marx, sobre o capital como sendo, não o acervo de
trabalho acumulado que permite a produção futura (como
propõe a ciência económica burguesa) mas "uma
relação social": "como é que um conjunto de
mercadorias de valores de troca, se transforma em capital? Converte-se pelo
facto de que enquanto
força
social independente, isto é, enquanto força em poder de
uma parte da sociedade
, se conserva e troca pela
força de trabalho, imediata, viva
. A existência de uma classe que não possui mais nada a não
ser a sua capacidade de trabalho é a primeira condição
necessária para que exista capital"
[5]
.
A velhacaria da burguesia francesa, plasmada no programa supracitado, fica
exposta sem margem para dúvidas perante esta tese: o programa
propõe-se deslocar a propriedade jurídica dos meios de
produção da esfera privada para a esfera pública, sem que
em momento nenhum se toque nas relações de produção
vigentes nessa sociedade. A
parte da sociedade
(e é Marx quem sublinha esta expressão) que continua a deter a
"força social" cuja existência depende de "uma
classe que não possui mais nada a não ser a sua capacidade de
trabalho" continua a mesma. Que essa propriedade se proclame "do
Estado", "pública", "da Nação",
"do povo", ou de um assobio, não altera em nada a realidade
material, objectiva, palpável, da vigência de
relações de produção capitalistas. Da
vigência da exploração do homem pelo homem. Promovida por
um aparelho de Estado, insista-se,
criado pela burguesia
e
ao serviço da burguesia.
Com efeito, e como sabem os largos milhares de trabalhadores precários
em inúmeras empresas e organismos públicos portugueses (parte
considerável dos quais, diga-se de passagem, contratados durante o
consulado do hoje preso preventivo José Sócrates), é
reconhecida a diligência e criatividade com que o Estado burguês
explora, oprime, e persegue protestos dos trabalhadores do sector
público. Tal exploração, é decerto
desnecessário explicá-lo, não é feita em
benefício "do povo", "dos cidadãos", do
Estado que "somos todos". Pelo menos pela minha parte, em momento
nenhum me foi feita chegar nem a infinitésima parte da percentagem do
salário de um motorista da STCP cortada por este Governo. Quanto aos
banqueiros com quem a mesma STCP (isto é, com quem o Estado
burguês) celebrou contratos
swap
, não poderão afirmar o mesmo.
De nenhuma forma, naturalmente, estas considerações devem
desautorizar o esforço e a exigência de que um conjunto de
empresas estratégicas sejam prontamente nacionalizadas. É
entendimento do autor que a luta contra a privatização, e onde
ela seja necessária pela nacionalização, da
produção e distribuição de electricidade, dos
transportes, do fornecimento de água, da banca, dos seguros, etc.,
é uma urgência indiscutível, e seria absurdo defender o
oposto. Cumpre, porém, ter em consideração quem
está a fazer essas nacionalizações, e quem está a
gerir essas empresas enquanto não são privatizadas. Cumpre ainda
compreender que essas nacionalizações só vigorarão
quando e enquanto a correlação de forças não
permitir a sua privatização, e que portanto todas as
nacionalizações empreendidas pelo Estado burguês são
conquistas de carácter puramente contingente, que permitem (ou devem
permitir) melhores condições para avanços ulteriores
não são fins em si mesmos. Em suma, estas
considerações buscam delimitar a diferença entre a
propriedade pública e o socialismo. Porque como, e certeiramente, afirma
o Programa do PCP, "[a] revolução portuguesa apresenta como
valiosa experiência o facto de, numa situação
revolucionária, mesmo não dispondo do poder político, as
massas populares em movimento e em aliança com o MFA terem podido
transformar profundamente a sociedade, empreender e realizar profundas reformas
das estruturas socioeconómicas, influenciar e condicionar o
comportamento do poder político e contribuir para a
consagração legal dos avanços revolucionários. Os
anos ulteriores mostram também a extraordinária capacidade das
massas para resistir à contra-revolução mesmo quando
desencadeada e desenvolvida pelo poder político. Mas a experiência
confirma também que a questão do poder acaba por determinar o
curso da política nacional"
[6]
.
(1) Hessel, Stéphane -
Empenhai-vos!
. Lisboa: Ed. Planeta, 2011, p. 92.
(2) Disponível em
www.odiario.info/?p=2405
(3) Reitere-se: o Estado é sempre de uma classe, nunca é neutro, e
jamais, em tempo algum, como fastidiosamente é vendido pelos
comentadores da imprensa burguesa, "é de todos nós".
(4) Não por acaso, na
Crítica do Programa de Gotha
, Marx esclarece que "[n]o que, porém, diz respeito às
actuais sociedades cooperativas, elas só têm valor na medida em
que são criações dos operários, independentes, nem
protegidas pelos governos, nem pelo burguês". É absolutamente
claro que este pressuposto se aplicava também às sociedades
mutualistas e demais instrumentos de protecção social
desenvolvidos, à época, pelos próprios operários.
Em verdade, e usando da ironia que lhe é reconhecida, Marx
escreverá, demolindo quaisquer ilusões em "[q]ue se pode
construir com apoio do Estado uma sociedade nova do mesmo modo que um
caminho-de-ferro novo, é digno da imaginação de
Lassalle!" O texto da
Crítica do Programa de Gotha
pode ser confirmado aqui:
www.marxists.org/portugues/marx/1875/gotha/gotha.htm#i3
(5) Marx, Karl -
Trabalho Assalariado e Capital
. Lisboa: Ed. Avante, 1975, p. 58. Os sublinhados estão no original.
(6) Disponível em
www.pcp.pt/programa-do-pcp
Do mesmo autor:
As armas da crítica e a crítica das armas
A substituição da táctica pelo tacticismo chama-se oportunismo
[*]
Licenciado em História e mestre em História e Educação.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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