Opinião do lado de lá do Atlântico
Revolucionar é preciso: a crise portuguesa (e nós?)
por Marcelo Badaró Mattos
[*]
Entre o Brasil e Portugal há laços históricos e, em
muitas de nossas famílias, sanguíneos, que nos fazem ter uma
sensação muito própria de proximidade. No entanto,
não temos visto muito espaço na imprensa empresarial brasileira
para notícias e análises da crise por que passa a sociedade
portuguesa no momento atual. Nem mesmo a esquerda brasileira parece muito
interessada em prestar atenção ao que acontece daquele lado do
Atlântico.
A direita, porém, está sempre atenta ao
que lhe parece ameaçador. Faz alguns dias, Reinaldo Azevedo, colunista
da revista
Veja,
publicou em seu blog uma nota sobre um debate ocorrido dias antes na TV
portuguesa, tendo por tema "Mudamos de país ou mudamos o
país?", no qual, em determinado momento, uma das entrevistadas se
envolveu em uma polêmica com um jovem da platéia
[1]
. Na versão de Azevedo, a debatedora é "a Marilena
Chauí" de Portugal e o jovem um herói do
"empreendedorismo", que aos 15 anos criou uma marca de roupas e
está tendo sucesso em tempos difíceis, demonstrando que a
iniciativa individual é a saída para a crise. Como o jovem
respondeu à debatedora, que o questionava sobre o valor dos
salários dos trabalhadores da indústria têxtil, dizendo que
era melhor ganhar o salário mínimo do que ficar no desemprego,
sendo aplaudido por parte dos presentes, esse
take
do programa foi reproduzido pelo colunista, com os comentários de praxe.
Exaltou-se a perspicácia do garoto moderno e apontou-se o atraso da
pesquisadora acadêmica.
Não perderei tempo analisando Reinaldo Azevedo, a
Veja,
ou mesmo comentando a tal ideia do tipo é melhor comer só
farinha que passar fome, exposta pelo raciocínio do rapaz, ao defender
implicitamente o programa de redução salarial em curso em
Portugal. Não merecem. Apenas preciso que a "Marilena
Chauí" portuguesa é Raquel Varela, historiadora reconhecida
internacionalmente por seus estudos sobre a Revolução dos Cravos
e sobre os trabalhadores do setor da construção naval e militante
política cada vez mais conhecida dos portugueses por suas
intervenções em dezenas de debates públicos, em centros
sociais, rádios e TVs. Neles tem demonstrado (ancorada em estudos
sérios e pormenorizados) as falácias da
argumentação dominante sobre os altos custos do Estado Social,
empregadas para justificar os cortes em salários, aposentadorias e
outros direitos dos trabalhadores. Já o jovem "empreendedor"
é Martim Neves, cuja fala, devidamente editada, foi reproduzida
imediatamente após o programa em páginas eletrônicas como a
do "microcrédito" do banco Millenium BCP e as de editores de
grandes jornais diários. Como se apurou pouco depois, o seu
"empreendimento" resume-se a estampar a sua logomarca (cujo registro
só foi requerido no dia seguinte ao programa) em camisetas e moletons
simples. Mas é claro que a propaganda feita durante e após o
debate o levou a um novo "patamar de vendas", conforme se depreende
pelos pedidos não atendidos registrados no
facebook
do "empreendimento".
O que estava em debate, entretanto,
é algo mais importante. Para além do trecho recortado por Azevedo
e pela direita portuguesa de forma geral, há uma resposta de Raquel
Varela omitida na edição que circula na rede. Nela, a
historiadora classifica o salário mínimo português (de 432
euros) como "uma vergonha", e demonstra como esse valor é
insuficiente para sustentar dignamente os trabalhadores e trabalhadoras
portugueses, assim como do resto do mundo, e lembra que tanto a
redução da massa salarial interna quanto a
imigração de portugueses que se quer hoje forçar visam
simplesmente instalar uma arena de competitividade por baixos salários
na Europa, de forma a ampliar a margem de lucro dos capitalistas que, desde
2008, têm se fartado de demitir, achatar salários e ainda assim
serem prodigamente subsidiados pelo Estado. Defendendo a
estatização dos bancos, a ruptura com a "troika" (FMI,
Banco Central Europeu e Comissão Europeia), o não pagamento da
dívida e a ruptura com o euro, além de relembrar o 25 de abril
para propor a atualidade da saída revolucionária, Raquel Varela
realmente tem incomodado à classe dominante portuguesa.
A
referência que faço ao debate na TV e à
replicação por aqui da grita da direita portuguesa contra a
representante de uma proposta política radicalmente alternativa tem
também um outro objetivo: chamar a atenção para o fato de
que a sociedade portuguesa vive um momento de crise econômica, social e
política. A taxa de desemprego atingiu 17,8% em abril, sendo da ordem de
42,5% o desemprego entre os jovens (segundo os dados da agência europeia
Eurostat). Dados locais indicam 1 milhão e 400 mil desempregados em uma
população economicamente ativa de 5,4 milhões de pessoas
(no total de 10 milhões e meio de portugueses e portuguesas). Ao mesmo
tempo, aposentadorias e salários do setor público foram cortados
e 80% dos empregados ganham menos de 900 euros por mês. A
precarização das relações de trabalho atinge boa
parte desses que ainda não vivem o desemprego completo, numa
força de trabalho que é relativamente jovem e altamente
qualificada. São 1,3 milhão de graduados com nível
superior e mais de 30 mil doutores formados pelas Universidades portuguesas.
Momentos como esses abrem espaço para o acirramento dos conflitos
sociais e é a isso que estamos assistindo em Portugal. Foram já
cinco greves gerais nos últimos cinco anos. A próxima já
está convocada para 27 deste mês de junho. Há
manifestações todos os dias (não é exagero
retórico) nas ruas portuguesas. E são, algumas delas, as maiores
manifestações da história do país, como a de 2 de
março último, que levou às ruas de dezenas de cidades
portuguesas mais de 1 milhão e 500 mil pessoas. A luta, é certo,
não é apenas portuguesa. No último dia 1 de junho, um
chamado à mobilização continental reuniu manifestantes em
centenas de cidades europeias, do sul "periférico" (Portugal,
Espanha, Grécia) ao centro financeiro do euro, em Frankfurt.
Mesmo com esse elevado nível de mobilização social,
até aqui, o governo tem resistido. Nem mesmo o gabinete ministerial
português caiu, apesar de todos os cartões vermelhos que a
população acuada pelo desemprego e o avanço da
miséria lhes apresenta. Tanto a direita declarada (PSD e CDS) no governo
quanto os "socialistas" (PS) compartilham da mesma submissão
aos desígnios da troika e o PS não parece querer se arriscar a
ganhar eleições para se desgastar fazendo mais do mesmo.
Já a oposição parlamentar de esquerda (especialmente o PCP
e o Bloco de Esquerda), embora tenha sido progressivamente empurrada pelo povo
nas ruas a uma posição de defesa da "demissão"
do gabinete, não apresentou até aqui um projeto radicalmente
distinto, propondo "renegociações", políticas
compensatórias e medidas "soberanas",
mas temendo sempre o "imponderável" da moratória ou da
saída do euro
[NR]
. Nos sindicatos, a grande central a CGTP , dirigida principalmente
pelos militantes do PCP, tende a limitar as mobilizações ao
domínio econômico-corporativo da defesa dos salários e
direitos do grupo cada vez mais reduzido de trabalhadores protegidos por
contratos estáveis.
O resultado dessa combinação
entre mobilizações multitudinárias de descontentamento e
ausência de alternativas programáticas das direções
mais representativas tem sido, até aqui, a sobrevivência de um
regime democrático em que o teatro das eleições referenda
governos títeres do poder de fato, emanado dos organismos supranacionais
do capital, a ditarem as regras do jogo contra os interesses das maiorias
trabalhadoras.
Pode uma situação dessa natureza se
sustentar por muito tempo? Não há previsões
infalíveis para o desenrolar da história. Podemos assistir na
sequência à desmoralização completa das
manifestações de massa. Afinal, como sustentar que milhões
possam ir às ruas a cada mês, que diversas greves gerais se
sucedam em poucos anos e que ainda assim nem um reles ministro caia de sua
cadeira? Ou, de outro lado, é possível que se abra um
período de inversão da correlação de forças
a favor dos "de baixo"?
A segunda hipótese não
pode ser dada como certa, mas está no horizonte de possibilidades,
especialmente porque falamos de um país que, há quase quarenta
anos, viveu a última revolução social do Ocidente. Nele
convivem uma geração de portugueses que protagonizou a
Revolução dos Cravos e as gerações seguintes, que
se beneficiaram das conquistas revolucionárias, mas são agora
mais fortemente impactadas pelo retrocesso social pós-2008. Mesmo
derrotada a revolução, seu legado de conquistas garantiu um
Estado Social (como o chamam por lá), que permitiu aos que foram
às ruas em 1974 ver seus filhos e netos completarem os estudos
universitários num sistema público de educação,
usufruírem de um sistema de saúde pública exemplar, se
informarem através de um sistema de rádio e televisão
públicos em que as telenovelas importadas do Brasil têm que
competir em audiência com programas de debate político, como o
citado no início deste texto, entre outras conquistas, sintetizadas pela
transferência de rendimento de cerca de 15% do capital para o trabalho no
período de 1974-1975.
Essa geração está
hoje, em grande medida, aposentada (reformada, como dizem por lá) e,
apesar dos cortes em seus rendimentos, vem equilibrando orçamentos
familiares em meio a filhos e netos precarizados e desempregados. A
construção de uma unidade nas lutas entre os
"reformados", com o aprendizado organizativo das jornadas de
1974-1975, os precarizados/desempregados que começam a ir para as
ruas na conjuntura atual desprovidos do aparato sindical dos trabalhadores
formais e os setores mais combativos da classe trabalhadora
sindicalmente organizada, pode fazer a diferença e significar o ponto de
inflexão na correlação de forças. Resta saber se os
que propõem tal estratégia conseguirão representatividade
em meio às organizações que surgiram do 25 de abril e
às novas formas organizativas que emergem das lutas de hoje, e ainda se
encontrarão eco social para suas propostas.
De qualquer forma,
olhando aqui do Brasil, não consigo deixar de pensar em algumas
questões. Sou historiador e estou acostumado a ouvir falar sobre
presumidas "heranças" portuguesas na ex-colônia das
Américas, como a ideia de um "patrimonialismo ibérico",
uma suposta confusão entre "público" e
"privado", que de fato só existe na cabeça daqueles que
se recusam a aceitar o fato de que o Estado (o "público")
existe historicamente para sustentar os interesses econômicos
inclusive das classes dominantes (o "privado"). Mais
recentemente virou moda dizer que fomos aqui uma extensão territorial
nos trópicos do "Antigo Regime" português, em chave
explicativa que menospreza tanto o caráter escravista da sociedade que
se desenvolveu nestas terras quanto o sentido de exploração que
motivou a empreitada colonizadora. Queria eu, porém, ouvir falar de
outras heranças e homologias entre Brasil e Portugal, num período
mais recente. Preferiria, com certeza, ter assistido a algum tipo de
influência mais direta da saída revolucionária de um regime
ditatorial, como a de 1974 em Portugal, na chamada
"transição democrática" brasileira. Assim como
espero que o exemplo das mobilizações atuais daquele lado do
Atlântico faça algum eco deste lado de cá.
[1] O programa chama-se "Prós e Contras", é transmitido
pela
RTP1 e, embora passe após as 22h, possui enorme
audiência para os padrões portugueses. A edição
comentada foi ao ar em 20 de maio último e pode ser assistida
em
http://www.rtp.pt/programa/tv/p29826/e15 06/Junho/2013
[*]
Professor da Universidade Federal Fluminense.
[NR]
O sublinhado é de resistir.info.
O original encontra-se em
www.correiocidadania.com.br/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
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