Inversão da espada
por César Príncipe
Portugal, em mais de oito séculos, atravessou agudas crises de
identidade nacional e de consolidação da independência.
Três ciclos marcam o Livro Negro da Nacionalidade. Os dois primeiros
têm calendário definido: 1383-1385/1580-1640. O terceiro
iniciou-se em 2011. Portugal voltou a ficar intervencionado, manietado,
tutelado. Desta vez, o inimigo dispensou o constrangimento da
ocupação militar: recorreu à arma monetária. Nos
períodos de sujeição aos ditames e vexames de Castela,
coube às arraias miúdas e a certos elementos da nobreza e da
burguesia
levantar do chão
o projecto nacional. Em textos subscritos nos últimos dois anos, tenho
refocado as figuras do conde Andeiro, do bispo Martinho, do Mestre de Avis, do
poboo meudo
, episódios do cerco de Lisboa: a revolução de
quatrocentos. Nesse regresso ao passado, tracei um paralelismo com a actual
transferência dos centros de decisão, a quebra de soberania, o
nosso
status
de protectorado, a nossa condição de garroteados pelo
défice, pela dívida, pela penúria. Na
continuação do relançamento deste olhar pela
história, evocarei hoje um dos sustentáculos de Castela em
Portugal no séc. XVII: a Casa dos Marqueses de Vila Real,
progénie liderante da
Corte de Trás-os-Montes.
[1]
Durante os preparativos da Restauração, houve quem pretendesse
cortar pela raiz a árvore genealógica da Casa Grande, que urdira
estreitos e fundos laços familiares e patrimoniais com o abocanhador
peninsular e mantinha uma rede de cúmplices que, sediada em Vila Real,
contava com personagens de relevo e influência, sobretudo a partir de
Coimbra. No entanto, as emergências conspirativas e a pragmática
conciliatória pouparam, na arrancada de 1640, este núcleo duro do
filipismo.
Vindicta cazpirreana
No entanto, as afrontas desta ala vinham do séc. XIV. Então,
João Afonso Telo de Meneses (c. 1330-1384), conde de Viana do Alentejo,
empreendeu uma surtida em Penela, que lhe custou a cabeça na
escaramuça com os aldeões:
o Conde de Viana, quando el Rei dom Fernando morreu, tomou logo voz por Castela
e recebendo soldo de el Rei quando veio cercar Lisboa; e tendo-a assim por ele,
saiu fora do lugar para tomar mantimentos contra vontade de seus donos, como os
seus haviam em costume, e levando consigo uns quarenta de cavalo, sem outros
peões nem besteiros, juntaram-se contra ele os das aldeias e comarca de
arredor para lhos defender, todos pé terra; e embrulharam-se eles com
eles, arremessaram-lhe o cavalo e caiu com ele em terra; e foi um vilão
rijamente, que chamavam de alcunha Cazpirre, e cortou-lhe a cabeça e
assim morreu; e os seus como o viram morto fugiram todos e os da vila tomaram
voz por Portugal e assim a tinham então.
[2]
Troika seiscentista
A marquesada não desmobilizaria, apesar do cabaz de compras para
integrar os seus próceres no regime restaurado. Assim, em 1641 (as
refregas com Castela prolongaram-se até ao tratado de paz de 1668), os
lusofilipinos embrenharam-se em actividades de
lesa-magestade
e apostaram no derrube das instituições renascentes. Denunciada
a maqui(nação), a Lei dos Restauradores caiu sobre os cabecilhas.
Em 28 de Julho de 1641, foi reaberta a caça aos
vendidos a Castela.
A montaria transcorreu de Setúbal a Caminha. A troika foi o primeiro
alvo:
D. Luís de Noronha Meneses
(1570-1641), marquês de Vila
Real,
D. Sebastião de Matos Noronha
(1586-1641), arcebispo de Braga,
D. Miguel Luís de Meneses
(1614-1641), duque de Caminha, filho do
marquês e sobrinho do primaz. No dia 29 de Agosto, sete dos implicados
subiram ao cadafalso no Rossio. As cabeças rolaram para que constasse
por montes e vales, de Lisboa a Madrid. O prelado Sebastião conseguiu
manter o pescoço a salvo, devido a considerações
diplomáticas: a cartada de Roma no reconhecimento do trono joanino.
Contudo, não chegaria a gozar a comutação da pena capital
em pena prisional: passados poucos meses, sucumbiria no cárcere de S.
Julião da Barra. Na altura, as instalações não
tinham o conforto dos nossos dias, recomendável para residência do
ministro dos submarinos, Paulo Portas, e para hotelaria política
internacional. Da degolação também se livrou D. Francisco
de Castro, arcebispo de Coimbra, inquisidor-geral, agraciado com perdão
real, confirmado com a graça papal: regressou ao
Santo Ofício.
Os supliciados foram também objecto de confisco de fazendas e
cabedais. Por quebra de descendência, a heráldica dos Meneses
reapareceria, com chancela de Filipe III, no portfólio da viúva
de D. Miguel, promovida a duquesa de Camiña (1641) e Grandeza de Espanha
(1658). Posteriormente, D. Carlos, um ano antes do regicídio (1907),
reintroduziu a linhagem Meneses nas sucessões titulares. Também
integra as prosápias dos duques de Medinaceli
[3]
, um dos frondosos e opulentos ramos das oligarquias espanholas. Deste modo, a
estirpe decapitada no
Verão Quente
de há 372 anos assegurou a sobrevivência imaginária.
Política do apagão
Há quem não goste de recordar estas datas, estes feitos, estes
enlaces, estes desenlaces. Não foi obra de capricho a
eliminação do feriado do 1.º de Dezembro. O Dia da
Independência Nacional foi riscado do calendário cumprindo uma
estratégia de desmemorização, no interesse de um
capitalismo sem pátria e da UEA/União Europeia Alemã. UEA
que montou uma operação de domínio continental,
comportando-se como uma aspiradora central de economias e receitas fiscais e
uma recicladora de sentimentos e convicções; UEA que cuidou da
distribuição de alguns despojos pelas novas fidalguias
gentílicas; UEA que tratou de aliciar os governos periféricos;
UEA que conta com a solicitude dos RGP/Regimentos de Guerra Psicológica,
também conhecidos como MCS/Meios de Comunicação Social. A
par do saqueio material, está, pois, em marcha um apagão
histórico de quanto simbolize apego patriótico, soberania,
identidade, liberdade, visando o desarme das referências, das vontades e
das consciências. Perante este programa, os povos perdem a sua agenda e o
seu roteiro. Nesta circunstância, repelir o directório
germano-unionista e a ofensiva usurária internacional é uma
questão de necessidade colectiva, de afirmação dos
direitos de personalidade, de refuncionamento da ordem constitucional. Tomar a
iniciativa de uma resposta que integre todas as forças anti-ultimatum da
UEA, conferindo a devida importância aos valores da memória,
assume carácter de verdadeira salvação nacional. Neste
ciclo de esbulho, traição e negação, por almas
gémeas de andeiros e vasconcelos, meneses e noronhas.
Fonte da vergonha
Ainda no ano de 1641, D. João IV, para que fosse geral o
opróbrio, emendou as armas da vila, constantes do foral de D. Afonso III
(1272): a espada, até aí, resoluta, de fio aprumado, passou a
exibir posição pendente. O agravo redundou em
300 anos de vergonha.
[4]
Só foi reposta a versão do séc. XIII, a rogo da
Câmara Municipal, em 1941. Salazar, consumado em assassínios
políticos e vinganças de longo prazo, achou que três
séculos bastavam para redimir os pecados de qualquer alma ou assunto de
Estado. De resto, ainda hoje se mantém a espada invertida na Fonte Nova.
Gerou-se mesmo um movimento cívico e cultural para que assim
continuasse. Com efeito, a maioria da população não foi
culpada do colaboracionismo de meia dúzia de espécimes azuis,
administrantes da ocupação e homens de negócios. Na
verdade, a espada da desonra reganha sentido sempre que as nobrezas, burguesias
e cleros se passam para as bandas e para os bandos das castelas. Bem fazem os
vila-realenses em salvaguardar o signo na fonte. Tem validade extraterritorial
e transtemporal.
Luísas de Portugal
Sinal dos tempos foi também emitido na envergonhada e acidentada
comemoração do 102º aniversário da República,
em 5 de Outubro de 2012. Assinalava-se o 5 de Outubro, a última
celebração como feriado nacional, por decisão do Governo
da Troika. A cerimónia, aberta em anos anteriores, decorreu, desta vez,
num espaço reservado e limitado, no Pátio da Galé. O
presidente da República assomou à varanda do Município de
Lisboa, e coadjuvado pelo edil, puxou os cordelinhos da bandeira. Eis que Sua
Excelência e seu Excelentíssimo anfitrião hasteiam o
símbolo da pátria de pernas para o ar. Atesta a ciência dos
campos de batalha que bandeira de avesso é sinal de que
o território foi tomado pelo inimigo
e endereça
um pedido de socorro.
Ninguém rectificou a anomalia: nem o presidente da República
nem o presidente da Câmara. Cavaco não demoraria a esgueirar-se
por uma porta lateral. Ao fundo do Pátio da Galé, uma mulher,
digna dos falares de Fernão Lopes e dos conjurados da
Restauração, bradou que não tinha dinheiro para as
necessidades elementares, nem sequer
para medicamentos:
Todos emproados, todos de barriga cheia. Vocês não têm
vergonha de olhar para a nossa miséria. Tenho uma reforma de quase 200
euros, estou farta de procurar trabalho.
Os seguranças dos apoderados da República removeram a
vox populi:
uma anónima ousara perturbar o insonso discurso presidencial. E
Luísa Trindade foi tema da Imprensa, Rádio e Televisão,
habitualmente vassalas de marqueses e markeleses:
as pessoas têm de começar a gritar
. Durante uns instantes, Luísa correu pela internet, entrou nas ondas,
gastou tinta. Ela representa o Coro das Luísas de Portugal, que clama
contra um poder que terá forçosamente de cair e que merece ser
julgado por uma sucessão de atentados constitucionais e penais:
económicos e financeiros, sociais e culturais. Sem olvidar os crimes de
lesa-pátria.
Brado de combate
A cantora lírica Ana Maria Pinto irrompeu, então, entoando a
Firmeza.
[5]
canção da resistência antifascista, musicada por
Fernando Lopes-Graça (1906-1994), com letra de João José
Cochofel (1919-1982):
Firmeza
Sem frases de desânimo
Nem complicações de alma,
Que o teu corpo agora fale,
Presente e seguro do que vale.
Pedra em que a vida se alicerça,
Argamassa e nervo,
Pega-lhe como um senhor
E nunca como um servo.
Não seja o travor das lágrimas
Capaz de embargar-te a voz;
Que a boca a sorrir não mate
Nos lábios o brado de combate.
Olha que a vida nos acena
Para além da luta.
Canta os sonhos com que esperas,
Que o espelho da vida nos escuta.
Os convidados, uns sinceramente, outros na situação de
apanhados,
aplaudiram.
Saídas de emergência
A espada da Fonte Nova e a bandeira do Município representam o Estado
da Nação e
o estado a que isto chegou.
[6]
O Miguel de Vasconcelos, a duquesa de Mântua, o marquês de Vila
Real, o duque de Caminha, o primaz das Hespanhas sobreviveram com outros nomes.
As elites cleptocráticas, frequentemente vinculadas a potências
estrangeiras, vão-se reproduzindo, revezando e acomodando. As
famílias sistémicas, as hereditárias e as ocasionais,
firmam o seu pacto de estabilidade. Sabem que carecem de legitimidade e,
portanto, há que afinar e afiançar fórmulas de
sustentabilidade. Evidentemente: ao serviço dos carcereiros do
Portugal Amordaçado
[7]
e das clientelas da
Europa connosco.
[8]
Para isso, buscam o consenso dos sectores hegemónicos: os internos e os
externos. As classes altas cultivam a usurpação das baixas e o
conúbio palaciano como regra de empreendedorismo e estilo de vida. Em
2013, no terceiro ano da terceira perda da Independência, as classes
populares e as classes médias vão tomando nota do seu cerco e do
seu sufoco, confrontadas com a degradação do quadro
democrático e a míngua de recursos. A luta de classes assume
várias expressões e tende a subir de registo na escala de
Richter. As placas tectónicas movimentam-se. Para as minorias mandantes
e privilegiadas, a grande maioria dos portugueses não passa de um
número de contribuinte, de um conjunto de indefesos a pilhar, a
desempregar, a exilar. Mas as vítimas reagem e contra-atacam.
Milhões de portugueses repudiam as políticas em curso e os seus
aplicadores,
bons alunos
da EOS/Escola de Ocupação & Saque. As figuras do Estado-fantoche
são invectivadas, apupadas, assobiadas, execradas, mal saem à
rua, quando decidem abrilhantar qualquer acto ou proferir qualquer palavra.
[9]
Conforme dados do RASI/Relatório Anual de Segurança Interna, no
decorrer do ano de 2012, tiveram lugar 3.012 manifestações (termo
que cobre desfiles e concentrações de diversa
duração e amplitude, acções-relâmpago,
paralisações com impacte público). Também se
poderá tomar como medida da temperatura laboral e social, a
concretização de quatro greves gerais em dois anos de mandato
deste Governo. As entidades do compromisso de condenação nacional
fogem pelas portas laterais e traseiras, fecham as portas no Dia da Liberdade,
alteram os trajectos, anulam ou adiam sessões e visitas. Têm medo
das manifestações. Têm medo das oposições.
Têm medo das eleições. Têm medo de quem os elegeu.
Têm medo de quem perdeu o medo. O poder desconfia do povo. O povo
desconfia do poder. O contrato social está minado. A aleivosia
esconde-se nos armários. A cólera extravasa nas ruas.
O povo é sereno.
[10]
O povo português revelou-se o melhor povo do mundo e o melhor activo de
Portugal.
[11]
Diz-se.
1. Portugal Dicionário Histórico, Corográfico,
Heráldico, Biográfico, Bibliográfico, Numismático e
Artístico,
Vol. V, Romano Torres Editor, 1904-1915, Lisboa.
2. Crónica de D. João I,
Fernão Lopes.
3. Nobreza de Portugal e do Brasil,
Vol. III, Editora Zairol Ldª, 1989, Lisboa.
4. Heráldica e documentos antigos,
Câmara Municipal de Vila Real.
5. Breve,
antologia poética, Editorial Caminho, 2010, ISBN 9789722125130.
6. Remate da alocução de Salgueiro Maia (1944-1992),
lançando o repto da tomada de Lisboa às suas tropas, na
manhã do 25 de Abril de 1974, Regimento de Cavalaria, Santarém.
7. Soares, Mário,
Le Portugal bailloné,
Calman-Levy, 1972.
Portugal Amordaçado,
Arcádia, 1974. Na versão portuguesa, o autor suprimiu as
alusões ao comprometimento da Igreja Católica com a ditadura. Em
1972, estava exilado em Paris; em 1974, integrava o Governo Provisório
em Lisboa. Meses depois, celebraria um compromisso com as forças da
Direita e o patriarca de Lisboa, D. António Ribeiro, assegurando uma
convocatória laica e cristã para a
manifestação da Fonte Luminosa,
Lisboa, 19/07/1975.
8. O Partido Socialista, controlada a Revolução, desencadeou uma
campanha amorosa sobre o relacionamento de Portugal com as potências
continentais, sob a consigna
Europa connosco,
1976.
9.
Público,
28/03/2013. Relatório da RASI, entregue na Assembleia da
República.
10. Pinheiro de Azevedo (1917-1983), primeiro-ministro do VI Governo
Provisório, comentário a respeito de um incidente no decurso da
manifestação do PS/PPD, Terreiro do Paço, 06/11/1975.
11. Vítor Gaspar, então ministro-delegado de Wolfgang
Schäuble, Assembleia da República, 04/10/2012.
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