A nova estratégia de negociação comercial do imperialismo
A
OMC
tem sido uma arma importante utilizada pelos países avançados a
fim de reverter as estruturas que os regimes
dirigistas
do terceiro mundo, postos em vigor após a descolonização,
erigiram para alcançar um certo grau de auto-suficiência. O acordo
TRIPS
por exemplo, que fortalece o controle total das corporações
multinacionais sobre a tecnologia, foi pressionado através da OMC. Mas o
mundo capitalista avançado recentemente descobriu uma arma ainda mais
forte, a qual consiste em acordos comerciais regionais (ACRs) ou bilaterais
como a Parceria Transpacífico (
TPP
, na sigla em inglês).
Para eles, a vantagem dos ACRs é que, ao invés de
negociações globais multilaterais onde têm de enfrentar um
vasto número de países, os quais além disso formam grupos
para aumentar a resistência contra esta ou aquela proposta, a
pressão pode ser aplicada mais eficazmente e de uma maneira mais
concentrada contra o limitado número de países que tipicamente
estão envolvidos nas ACRs. Ao invés de negociações
envolvendo 162 ministros do Comércio, que foi o número em
Nairobi, as ACRs implicam negociações com apenas uma dúzia
ou ainda menos. O terceiro mundo, em suma, é fragmentado e as ACRs
são negociadas separadamente com estes fragmentos, o que torna muito
mais fácil exercer a hegemonia dos países avançados.
Portanto, o imperialismo está a comutar dos acordos comerciais
multilaterais para acordos comerciais regionais. E nos fóruns
multilaterais que continuam a existir está a comutar da procura de
acordos grandiosos para a negociação apenas de questões
específicas.
Na reunião ministerial de Nairobi, que acaba de terminar, ele abandonou
oficialmente o projecto de erigir qualquer grandioso dispositivo de
comércio multilateral, acordado globalmente. Ao invés disso, o
que aconteceria doravante são negociações para ACRs onde
pode facilmente amedrontar o pequeno número de países do terceiro
mundo envolvidos, assim como negociações no interior da OMC sobre
questões particulares, em que podem ser arrancadas dos países do
terceiro mundo sem qualquer espaço para um exigente
quid pro quo
posterior em alguma outra esfera.
O abandono da Agenda de Desenvolvimento de Doha (
DDA
)
, que prometia conciliar as aspirações de desenvolvimento do
terceiro mundo num novo esquema de comércio global, está alinhado
com esta mudança de estratégia. Não que tenha sido
alcançado qualquer progresso real significativo na agenda Doha, mas pelo
menos constituiu uma baliza em negociações OMC. Toda rodada de
discussões sob a OMC reafirmava o compromisso para com a agenda Doha,
mas Nairobi rompeu novo terreno. Sua declaração ministerial
é bastante franca ao admitir que "... muitos membros reafirmam a
Agenda de Desenvolvimento de Doha... Outros Membros não reafirmam os
mandatos de Doha pois acreditam que são necessárias novas
abordagens para alcançar resultados significativos em
negociações multilaterais...".
O governo dos EUA mantém a posição legal de que se a DDA
não for reafirmada, como tem sido em toda reunião ministerial
até Nairobi, então está morta. Outros países podem
contestar esta opinião, mas o facto é que a DDA não foi
reafirmada em Nairobi. E a razão é que o mais poderoso
país capitalista quer explicitamente que ela morra.
Os países africanos tinham um interesse particular na
reafirmação da DDA e é irónico que o encontro
ministerial da OMC efectuado pela primeira vez sobre o solo africano tenha
visto as preocupações da África serem tratadas com
desprezo. E, também ironicamente, os Estados Unidos foram capazes de
deitar a pique a DDA e amuralhar todas as questões levantadas por
países do terceiro mundo, induzindo um punhado de países
importantes destes últimos a concordarem com a minuta da
Declaração a qual foi então imposta sobre os restantes.
Dentre este punhado de países infelizmente estava a Índia, a qual
anteriormente fizera declarações vigorosas.
Não é sequer que a Índia tenha obtido algumas
concessões para si própria enquanto descartava os países
pobres do terceiro mundo. Em matérias de preocupação vital
para si própria, a Índia retornou de Nairobi de mãos
vazias. Uma destas matérias era a aquisição pública
(public procurement)
de cereais para o actual sistema de distribuição pública
(
PDS
). Sobre esta questão a OMC foi o palco de um drama bizarro. A
aquisição pública de cereais a preços que
excedessem uma reconhecida referência da OMC fixada vários anos
atrás (desde o tempo em que havia muita inflação) é
contada como um "subsídio distorcedor do mercado". E se a
magnitude de tais subsídios distorcedores do mercado dados à
agricultura excederem aproximadamente 10 por cento do valor da
produção na agricultura (o qual neste preciso momento é o
caso na Índia), então supõe-se que o país em causa
está a violar as "normas" da OMC.
Por outro lado, os países capitalistas avançados dão
enormes subsídios
aos seus agricultores mas estes não são considerados de
todo como "distorcedores do mercado". Os Estados Unidos por exemplo
dão sistematicamente subsídios na forma de apoio em dinheiro
(cash support)
aos agricultores que chegam
em média
a 40 a 50 por cento do seu valor de produção a cada ano.
E em alguns anos o subsídio dado excedeu mesmo o valor da
produção
(desde então o rácio entre os dois flutua muito). Contudo, tal
subsidiação maciça não viola as "normas"
da OMC.
Ainda por cima, entre os países avançados a magnitude dos
subsídios em relação ao valor da produção
agrícola dada pelos EUA está na zona inferior.
A Europa e o Japão deram em média subsídios ainda mais
altos do que os EUA.
Mas nada disto franze as sobrancelhas da OMC, ao passo que os subsídios
paupérrimos em relação ao valor da produção
proporcionados por países como a Índia e também a
um grupo de agricultores que são muito mais pobres do que aqueles nos
países do mundo capitalista avançado e em apoio a um sistema de
distribuição pública sem o qual um vastíssimo
número de pessoas enfrentaria a fome absoluta atrai a ira daquela
organização.
ESPADA DE DÂMOCLES
A bizarrice desta lógica e o absurdo absoluto de qualquer esquema
que seja baseado na mesma tem-na impedido de ser realmente imposta (se
fosse, então países como a Índia tornar-se-iam
passíveis de acção punitiva). Na reunião
ministerial de Bali a matéria foi adiada e a países como a
Índia foi permitido por ora continuarem a sua prática de adquirir
cereais a determinados preços fixos sob uma "Cláusula de
Paz" (uma cláusula que impede pressionar questões até
um ponto de conflito). Supunha-se que Nairobi viesse a ser o fórum onde
a OMC finalmente acederia à razão e, ao invés de medidas
pára-arranca como a "Cláusula de Paz", permitiria
oficialmente a países como a Índia executarem
operações de aquisição pelo governo nos mercados de
cereais para alimentar o sistema de distribuição público.
Mas nada disto aconteceu. A matéria ainda foi deixada pendurada como uma
espada de Dâmocles sobre países como a Índia.
Na verdade, a analogia da espada de Dâmocles é bastante adequada.
Na reunião ministerial de Singapura, os países avançados
introduziram todo um novo conjunto de questões na agenda da OMC,
incluindo facilitar a entrada de investimento estrangeiro, assim como
anteriormente já haviam introduzido a questão dos direitos de
propriedade intelectual. Dentro do terceiro mundo houve resistência
à introdução destas novas questões. E a partir de
agora, mesmo na declaração de Nairobi a OMC é constrangida
a dizer: "Qualquer decisão de lançar
negociações multilateralmente sobre tais questões (ex., as
questões relativas a Singapura) precisariam ser acordadas por todos os
Membros". Mas com assuntos de importância vital para os
países do terceiro mundo (como a distribuição
pública de cereais) deixadas pendentes, torna-se mais fácil para
os países avançados persuadi-los a aceitar a
introdução de novos pontos na agenda e até mesmo
fazê-los com soçobrem sobre tais questões. Por outras
palavras, os países avançados podem impor
"condicionalidades" aos do terceiro mundo até mesmo quanto
à continuação da própria "Cláusula da
Paz". Ao não rematar a questão da aquisição
pública, mantendo-a como uma espada de Dâmocles sobre os
países do terceiro mundo de modo a que possam ser aterrorizados
até à submissão sobre outros pontos, é portanto um
estratagema útil para os países avançados.
CENÁRIO "CARAS VENÇO EU, COROAS PERDES TU"
O que Nairobi alcançou para o terceiro mundo é
desprezível: mesmo as restrições a subsídios
à exportação de produtos agrícolas anunciadas em
Nairobi, as quais são trombeteadas como impedimento do dumping de tais
produtos pelos países avançados, pouco significam (uma vez que
não tocam na questão do crédito para a
exportação de tais produtos). Mas o que Nairobi extraiu para os
países avançados como "concessões" do terceiro
mundo (as quais não foram dadas voluntariamente) é substancial.
Ao livrarem-se da DDA, ao manterem países até agora protegidos
pela "Cláusula da Paz" sob tensão e ao adoptarem uma
nova abordagem pela qual a OMC doravante ficaria interessada com
questões particulares ao invés de tratar de uma nova arquitectura
global, os países avançados obtiveram para si próprios uma
situação "Caras venço eu, Coroas perdes tu".
Onde lhes fosse adequado tentariam a rota da OMC e se fossem contrariados
tentariam a rota dos ACRs.
Mesmo o
Financial Times,
que não pode ser acusado de "viés progressista", teve
de escrever sobre Nairobi:
"Numa vitória para os EUA e a UE,
que pressionavam por um novo caminho para a OMC, ministros do Comércio
dos 162 países membros reunidos sábado em Nairobi deixaram de
"reafirmar" o Doha Round, pela primeira vez desde que foi
lançado em meio as grandes fanfarras em 2001. Eles também abriram
a porta à discussão de novas questões na OMC, tais como
economia digital e investimento" (itálicos acrescentados).
O cenário "Caras venço eu, coroas perdes tu"
estender-se-á mesmo a instituições supra-nacionais de
domínio corporativo global, as quais o imperialismo amolda com
entusiasmo a fim de transcender os Estados-nação e anular a
intervenção democrática dos povos. Se tais
instituições puderem ser erguidas sob a OMC, tais como o Trade
Policy Review Mechanism (TRPM), então isso será óptimo
para o imperialismo. Mas se não o puderem fazer, então pode ser
tentada a rota da ACRs a fim de dar nascimento a tais
instituições, como está a acontecer sob o TPP.
27/Dezembro/2015
Ver também:
ourworldisnotforsale.org/br
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2015/1227_pd/imperialism's-new-trade-negotiating-strategy
. Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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