Lenin e o revisionismo
por Miguel Urbano Rodrigues
Os dirigentes da União Europeia nomeadamente Merkel, Hollande e
Cameron intensificaram nas últimas semanas as suas
críticas à Rússia. O pretexto são os acontecimentos
da Ucrânia. Um alvo prioritário é Vladimir Putin. Um dos
absurdos dessa campanha é a insistência em apresentarem o
presidente da Rússia como um ditador que estaria empenhado numa
política que visaria a reconstituição parcial da
União Soviética.
Um anticomunismo transparente é identificável em crónicas
de influentes analistas ocidentais. Não obstante a Rússia ser
hoje um país capitalista, slogans bolorentos da guerra fria são
retomados.
Putin é acusado de recorrer a métodos e à linguagem de
comunistas históricos. Até a realização da parada
da vitória em Moscovo, a 9 de Maio, para comemorar a derrota do Reich
nazi, foi interpretada como uma ameaça em Washington e algumas capitais
da União Europeia.
Uma estranha febre ideológica ganha subitamente atualidade e destacados
intelectuais do sistema capitalista divulgam a desproposito
entusiásticas apologias do neoliberalismo e exorcizam o marxismo como
velharia obsoleta.
É nessa atmosfera que se insere o novo discurso anticomunista que,
agitando fantasmas, falsifica a História.
Na tentativa de apresentarem Marx e Lenin como inimigos da democracia,
intervêm figuras exponenciais de uma ideologia inseparável da
engrenagem liberticida que ameaça a humanidade e é
responsável por crimes monstruosos.
Em Portugal os comentadores de serviço na TV, na radio e nos jornais de
"referencia" cumprem com zelo a sua tarefa, debitando asneiras no
combate ao suposto renascimento do "saudosismo comunista" na
Rússia.
Creio por isso oportuno e útil recordar fatos e situações
históricas que desmontam a atual campanha ideológica do
imperialismo.
Começarei por chamar a atenção para a falsidade das teses
de académicos anticomunistas que atribuem a Lenin um dogmatismo
rígido na utilização do marxismo para a compreensão
e transformação do mundo. Trata-se de uma grosseira mentira. O
fundador do primeiro estado socialista não via no marxismo uma
ciência imobilista, de fronteiras definitivas.
"Não consideramos de modo algum escreveu a teoria de
Marx como algo de acabado e intocável, estamos pelo contrário
convencidos de que ela apenas assentou a pedra angular da ciência que os
socialistas devem fazer avançar em todas as direções, se
não querem atrasar-se em relação à vida. Pensamos
que para os socialistas russos é especialmente necessária a
elaboração independente da teoria de Marx, pois esta teoria
oferece apenas postulados gerais orientadores que em particular à
Inglaterra se aplicam de maneira diferente da França, à
França de maneira diferente da Alemanha, à Alemanha de maneira
diferente da Rússia
[1]
.
Lenin repetiu incansavelmente que sem teoria revolucionária não
pode triunfar qualquer movimento revolucionário. Mas conseguiu, com
imaginação e talento, ser simultaneamente flexível na
aplicação do método marxista e intransigente no combate
às ideias e manobras daqueles que, afirmando ser marxistas, assumiam na
prática posições incompatíveis com a ideologia do
autor de
O Capital.
Contrariamente à convicção de muitos jovens que
identificam nos "renovadores" que contribuíram para a social
democratização de muitos PCs europeus um fenómeno
relativamente recente, o revisionismo do marxismo mergulha as raízes no
século XIX.
Principiou ainda em vida de Marx e foi permanente. Em 1894, quando Lenin
preparava a fundação do futuro partido bolchevique, teve de
travar uma luta dura contra os "marxistas legais", tendência
liderada pelo alemão Struve que procurava "tomar do marxismo tudo
aquilo que é aceitável para a burguesia liberal, incluindo a luta
por reformas, abrangendo a luta de classes (sem a ditadura do proletariado),
incluindo o reconhecimento "geral" dos ideais socialistas e a
substituição do capitalismo por um "novo sistema" e
rejeitar "somente" a alma viva do marxismo, o seu caracter
revolucionário".
A segunda ofensiva dos oportunistas para desvirtuar o marxismo em
benefício da burguesia teve o seu epicentro no partido Social Democrata
Alemão, ao tempo muito prestigiado, quando o seu dirigente Edward
Bernstein publicou em 1899 uma serie de artigos em que revia teses fundamentais
do marxismo. Na sua apologia do reformismo lançou uma palavra de ordem
famosa: "o movimento é tudo, o objetivo final quase nada".
[2]
Lenin e Rosa Luxemburgo arrancaram-lhe a máscara, denunciando-o como um
deturpador do marxismo. Para os comunistas "o objetivo final" era
tudo e o reformismo de Bernstein apontava para uma conciliação
com a burguesia. Na prática, Bernstein retomava teses
reacionárias da filosofia de Kant. Mas a sua pregação
influenciou um amplo sector do Partido Social Democrata Alemão,
então marxista, com repercussões negativas na Rússia.
[3]
Uma terceira grande ofensiva do revisionismo ocorreu em 1908. Dois
filósofos, o austríaco Ernst Mach e o alemão Richard
Avenarius, que negavam a existência objetiva do mundo material,
difundiram a chamada filosofia da "experiencia crítica", mais
conhecida pelo nome de Empirio-criticismo. Segundo eles, os corpos seriam
somente "complexos de sensações". Os trabalhos de ambos
deram origem a uma corrente de pensamento que se popularizou com o nome de
"machismo". Mach sobretudo, embora pretendendo ser marxista, rejeitou
o essencial do materialismo histórico e do materialismo dialético.
Uma parcela ponderável da intelectualidade progressista europeia aderiu
com entusiasmo à essa nova filosofia, aceitando-a como escorada na
ciência. Kautsky, abrindo as colunas do órgão central da
social-democracia alemã à apologia do Empirio-criticismo,
contribuiu para aumentar a confusão gerada.
Os mencheviques aderiram imediatamente, mas a propaganda machista perturbou
também quadros da fração bolchevique do Partido
Operário Social Democrata da Rússia-POSDR-b. Essa
influência negativa levou inclusive à formação de um
grupo oportunista, os "otzovistas" que defendia a retirada do
Parlamento russo (a Duma) dos deputados bolcheviques, afirmando que o Partido
deveria realizar apenas atividades ilegais.
Foi então que Lenin declarou guerra a essa perigosa modalidade de
revisionismo, primeiro através de artigos, depois num livro,
Materialismo e Empiriocriticismo,
ensaio filosófico que com o tempo se tornou um clássico do
marxismo como obra teórica. Demonstrou que Mach e os seus seguidores,
simulando realizar um trabalho científico inovador, se limitavam afinal
a colar um novo rótulo a velhas teses idealistas
[4]
.
O MODERNO REVISIONISMO
Os esforços para destruir o marxismo foram permanentes em vida de Lenin
e prosseguiram após a sua morte.
Desde o início da I Guerra Mundial uma onda de falso patriotismo varreu
a Europa. Tripudiando sobre os seus programas, e violando compromissos
assumidos em nome do internacionalismo proletário, partidos que
pretendiam ser socialistas votaram os créditos de guerra das grandes
potências envolvidas no conflito, tornando-se cúmplices da
hecatombe que atingiu a humanidade. Essa opção foi decisiva para
o descrédito e agonia da II Internacional. A luta contra o imperialismo
perde muito do seu significado, dizia Lenin, se não "estiver
indissoluvelmente ligada à luta contra o oportunismo". O grande
revolucionário foi portanto implacável na denúncia do
social-chauvinismo, desmentindo que a defesa da liberdade e dos verdadeiros
interesses nacionais fosse a motivação da guerra.
A vitória da Revolução Russa criou entretanto, as
condições que permitiram a criação da III
Internacional. Mas, como era de esperar, a existência da União
Soviética foi por si só um incentivo a uma ofensiva permanente em
múltiplas frentes contra o marxismo.
Finda a II Guerra Mundial, a luta contra o comunismo assumiu facetas muito
diferenciadas. Os partidos comunistas europeus tinham desempenhado um grande
papel na luta contra o fascismo. Enfraquecê-los, instalar neles o
divisionismo, empurrá-los para o antisovietismo e o afastamento do
marxismo foi uma constante nas campanhas das burguesias e do imperialismo.
No auge da guerra-fria, o Manifesto de Champigny em França, em 1968,
quando Waldeck Rochet era secretário-geral do PCF, cumpriu importante
papel em debates ideológicos que abriram a porta ao eurocomunismo.
Invocando a necessidade de renovar o marxismo, dirigentes como os franceses
Georges Marchais, Roger Garaudy e Louis Althusser, o italiano Enrico
Berlinguer, o espanhol Santiago Carrillo e outros serão lembrados como
arquitetos de um revisionismo que encaminhou os seus partidos para a social
democratização. No caso do PCI a guinada à direita
funcionou alias como etapa rumo à sua autodestruição.
O revisionismo atuou, porem, sob mascaras muito diferentes. Após a
desagregação da União Soviética surgiram em muitos
partidos dirigentes que, apresentando-se como empenhados em renovar o marxismo,
passaram rapidamente ao ataque ao leninismo e ao centralismo
democrático. Alguns acabaram ingressando em partidos socialistas
integrados no sistema capitalista.
As universidades produziram uma geração de académicos que,
principiando por leituras perversas de Marx, não tardaram a procurar
justificações para a defesa de políticas neoliberais.
Ganharam também alguma notoriedade revisionistas (oportunistas de
esquerda) que, pretendendo exibir uma suposta pureza marxista, recorreram a
textos de Gramsci e de Che Guevara para lhes deturparem o pensamento em obras
de cariz anti-soviético, aplaudidas pelo imperialismo.
Uma modalidade de anticomunismo, mais subtil, é a praticada por
intelectuais que, criticando o capitalismo, identificam nos movimentos sociais
a força revolucionaria vocacionada para salvar a humanidade (John
Holloway, Bernard Cassen, Ignacio Ramonet, Boaventura Sousa Santos, Hans
Dietrich, etc) negando aos partidos protagonismo na luta contra o sistema.
Aceitar em Marx o economista e rejeitar o ideólogo é atitude
frequente em cenáculos de intelectuais que satanizam Lenin.
O PERIGO OPORTUNISTA
A palavra oportunista tornou-se incómoda para muitos dirigentes de
partidos comunistas europeus e latino americanos. Essa atitude traduz a
consciência de estratégias e tacticas que afetaram a unidade do
movimento comunista internacional. As suas últimas reuniões
confirmaram a existência de discordâncias profundas que o
debilitaram.
O panorama atual é muito complexo. Na Europa, a maioria dos partidos
estão hoje integrados no Partido da Esquerda Europeia, ombro a ombro com
partidos burgueses como o Die Linke alemão, o Syriza da Grécia e
o Bloco de Esquerda de Portugal.
A função inconfessada desse partido é neutralizar os
trabalhadores, dificultando a sua participação nas grandes lutas
contra o imperialismo e as políticas neoliberais impostas na
União Europeia. Não surpreende que o PEE conte com a simpatia dos
media controlados pelo capital e a benevolência dos Governos que o
representam.
Muitos partidos comunistas foram contaminados nas últimas
décadas. Alguns participaram na orquestra do antisovietismo. Robert Hue,
quando secretário-geral do PCF, teve o descaramento de afirmar que
"tudo foi negativo na União Soviética".
O Partido Comunista Italiano desapareceu depois de mudar de nome. O Partido
Comunista Francês, em rápida metamorfose, renegou o passado e
transformou-se numa caricatura de partido operário. O Partido Comunista
de Espanha, hoje antileninista, diluiu-se numa Esquerda Unida inofensiva. Uma
epidemia de oportunismo instalou-se no movimento comunista internacional.
Uma das suas manifestações é a crítica
ostensiva ou indireta a Partidos que, na fidelidade aos
princípios continuam a assumir-se como marxistas-leninistas. São
visados entre outros o Partido Comunista da Grecia-KKE, o Partido Comunista do
México-PCM, e o Partido Comunista Brasileiro-PCB.
Não cabe neste artigo comentar a estratégia desses partidos
revolucionários. Não me identifico com todas as
posições que assumem. Mas eles me fazem recordar que o Partido
Comunista Português, pela fidelidade aos princípios e à sua
história, resistiu vitoriosamente com firmeza à vaga de
anticomunismo que, sobretudo no início dos anos 90, descaracterizou ou
destruiu outros.
Hoje, é precisamente essa fidelidade aos princípios do KKE, do
PCM e do PCB, é a sua firmeza no combate ao revisionismo e na
denúncia do oportunismo que me inspiram respeito e
admiração.
Eles e outros fundadores da
Revista Comunista Internacional
são hoje uma minoria no Movimento Comunista Internacional. Mas a
coerência demonstrada na fidelidade ao pensamento e obra de Marx e a
coragem com que assumem a herança de Lenin contam com a minha
solidariedade fraterna.
(1) V.Lenin, O Nosso Programa, Obras Completas, in Tomo 4, pág. 184
(2) V.I.Lenin, A Falência da II Internacional, idem, Tomo 26, pág.
227
(3) V.Lenin, Uma Orientação Retrógrada na
Social-democracia Russa, idem, Tomo 4, pág. 265
(4) V.i.Lenin, Materialismo e Empiriocriticismo, Edições Avante!
1982, Lisboa
Serpa e Vila Nova de Gaia, Agosto de 2014
O original encontra-se em
www.odiario.info/?p=3392
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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