Ignorámos o Iraque nos anos 90
Mesmo antes da guerra de 2003 estivemos a atacar civis iraquianos com as
nossas desumanas sanções económicas. Mas onde estavam os
media a protestar contra esta injustiça?
por John Pilger
Em Outubro de 1999 visitei um hospital com crianças a
morrerem em Bagdad em companhia de Denis Halliday, que no ano anterior
renunciara ao cargo de assistente do secretário-geral das
Nações Unidas. "Através das Nações
Unidas estamos a travar uma guerra contra o povo do Iraque. Estamos a atingir
civis. Pior, estamos a atingir crianças... O que dizer disto tudo?",
perguntou ele.
Halliday estivera 34 anos na ONU. Como funcionário internacional muito
respeitado no campo da "ajudar as pessoas, não
prejudicá-las", como ele coloca, ele fora enviado ao Iraque para
por em execução o programa petróleo por alimentos, o qual
posteriormente denunciou como uma impostura. "Estou a renunciar",
escreveu, "porque a política de sanções
económicas está a destruir toda uma inteira sociedade. Cinco mil
crianças estão a morrer todos os meses. Não quero
administrar um programa que cumpre a definição de
genocídio".
O sucessor de Halliday, Hans von Sponeck, outro assistente do
secretário-geral como mais de trinta anos de serviço,
também resignou em protesto. Jutta Burghardt, a responsável do
Programa Mundial de Alimentos no Iraque, acompanhou-os, dizendo que não
podia mais tolerar o que estava a ser feito ao povo iraquiano. A sua
acção colectiva foi inédita, mas mereceu apenas uma
atenção passageira por parte dos media. Não houve
investigação séria de jornalistas às suas graves
acusações contra os governos britânico e americano, os
quais efectivamente prosseguiram o embargo.
A revelação de Von Sponek de que as sanções
obrigavam os iraquianos a viverem com pouco de US$100 por ano não foram
relatadas. "Estrangulamento deliberado", chamou ele a isto. Nem
tão pouco o facto de que, até Julho de 2002, mais de US$ 5 mil
milhões de valiosos abastecimentos humanitários, os quais haviam
sido aprovados pelo comité de sanções da ONU e pagos pelo
Iraque, foram bloqueados por George W. Bush, com o apoio de Tony Blair. Eles
incluíam produtos alimentares, remédios e equipamento
médico, bem como itens vitais para abastecimento de água,
saúde pública, agricultura e educação.
O custo em vidas era estarrecedor. Entre 1991 e 1998, relatou a Unicef,
morreram 500 mil crianças iraquianas com menos de cinco anos. "Se
você incluir adultos", afirmou Halliday, "o número agora
é quase certamente bem superior ao milhão". Em 1996, numa
entrevista ao programa americano 60 minutos, sobre assuntos actuais,
perguntaram a Madeleine Albright, então embaixadora americana na ONU,
"Ouvimos que meio milhão de crianças morreu... valeu a pena
pagar esse preço?" Resposta de Albright: "Nós
pensamos que valeu a pena". Desde então a rede CBS de
televisão tem-se recusado a permitir que o videotape daquela entrevista
fosse mostrado outra vez, e o repórter não discutiu o assunto.
Halliday e von Sponek tem sido persona non grata na maior parte dos media
americanos e britânicos. Aquilo que estes denunciantes haviam revelado
é demasiado desagradável: não só o embargo era um
grande crime contra a humanidade como realmente reforçava o controle de
Saddam Hussein. A razão porque tantos iraquianos sentem-se ressentidos
em relação à invasão é também porque
recordam o embargo anglo-americano como um sítio medieval,
incapacitante, que os impediu de derrubar a sua ditadura. Isto quase nunca
é relatado na Grã-Bretanha.
Halliday apareceu no Newsnight da BBC2 logo após a sua renúncia.
Vi o apresentador Jeremy Paxman permitir a Peter Hain, então ministro do
Foreign Office, ofende-lo como um "apologista de Saddam". A
vergonhosa actuação de Hain não era surpreendente. Na
véspera da conferência daquele ano do Partido Trabalhista ele
afastou o Iraque como uma "questão marginal".
Alan Rusbridger, o editor do
Guardian
, escreveu recentemente no
New Statesman
que alguns jornalistas "consideram mau costume empenhar-se em debates
públicos sobre qualquer coisas que tenha a ver com ética ou
padrões, que não importam para o objectivo fundamental do
jornalismo". Isto constituía um bom ponto de partida da habitual
conversa sociável que passa por comentário nos media mas que
raramente se dirige à "finalidade fundamental do jornalismo"
e, especialmente, nunca aos seus silêncios letais e coniventes.
"Quando a verdade é substituída pelo silêncio",
disse o dissidente soviético Yevgeny Yevtushenko, "o silêncio
é uma mentira". Ele podia estar a referir-se ao silêncio
sobre os efeitos devastadores do embargo. É um silêncio que
transforma jornalistas em acessórios, assim como o seu silêncio
contribuiu para uma invasão ilegal e não provocada de um
país indefeso. Sim, havia muito ruído nos media antes da
invasão, mas da versão fiada dominada por Blair, e os que diziam
a verdade foram postos de lado. Scott Ritter era o inspector superior de armas
da ONU no Iraque. Ritter começou a denunciar há mais de cinco
anos quando declarou "Em 1998, a infraestrutura de armas químicas
[do Iraque] fora completamente desmantelada ou destruída pela Unscom...
O programa de armas biológicas acabara, as maiores
instalações foram eliminadas... O programa de mísseis
balísticos de alcance longo estava completamente eliminado. Se eu
tivesse de quantificar a ameaça do Iraque diria que é zero".
A verdade de Ritter mal foi reconhecida. Tal como Halliday e von Sponeck, ele
quase nunca era mencionado nos noticiários da televisão, a
principal fonte de informação da maior parte do povo. O estudado
obscurecimento
(obfuscation)
de Hans Blix era muito mais aceitável como a "voz do
equilíbrio". Nunca foi questionado que Blix, tal como Kofi Annan,
estivesse a efectuar os seus próprios jogos políticos com
Washington.
Até a queda de Bagdad, a desinformação e as mentiras de
Bush e Blair eram canalizadas, amplificadas e legitimadas pelos jornalismo,
particularmente pelos da BBC, os quais definem a sua cobertura política
pelos pronunciamentos, acontecimentos e personalidades de Whitehall e
Westminster. Andrew Gilligan rompeu esta regra nas suas excelentes reportagens
de Bagdad e posteriormente na revelação da mais importante fraude
de Blair. É instrutivo que a maior parte dos ataques efectuados contra
ele tivessem vindo dos seus colegas jornalistas.
Nos 18 meses cruciais que precederam o ataque ao Iraque, quando Bush e Blair
estavam a planear secretamente a invasão, jornalistas famosos e bem
pagos tornaram-se pouco mais do que canais, divulgadores dos divulgadores
aquilo que os franceses chamam de funcionários. O papel supremo
dos jornalistas reais não é canalizar e sim desafiar, não
é cair no silêncio e sim expor. Houve excepções
honrosas, nomeadamente Richard Norton-Taylor no
Guardian
e o irrepreensível Robert Fisk no
Independent
. Dois jornais, o Mirror e o
Independent
, romperam as fileiras. Além de Gilligan e de mais um ou dois, os
homens da comunicação fracassaram em reflectir o próprio
assenso da consciência da verdade entre o público. Na
rádio comercial, um importante jornalista que levantava demasiadas
questões foi instruído a "baixar o tom do material
anti-guerra porque os anunciantes não gostavam disso".
Nos Estados Unidos, nos chamados medias de referência
(mainstream)
do que é constitucionalmente a imprensa mais livre do mundo, a linha
manteve-se, com o resultado de que as mentiras de Bush foram acreditadas pela
maioria da população. Os jornalistas americanos estão
agora a desculpar-se, mas é demasiado tarde. Os militares americanos
estão fora de controle no Iraque, a bombardear áreas densamente
populosas com impunidade. Quantas famílias iraquianas como a de Kenneth
Bigley estão agora enlutadas? Não sentimos a sua
angústia, ou ouvimos os seus apelos por misericórdia. Segundo
estimativa recente, cerca de 37 mil iraquianos morreram nesta loucura grotesca.
Charles Lewis, o antigo repórter-estrela da CBS que agora dirige o
Centre for Public Integrity, em Washington, DC, disse-se não
dúvidas de que se os seus colegas tivessem cumprido a sua tarefa ao
invés de actuarem como números
(ciphers),
a invasão não se teria verificado. Tal é o poder dos
media modernos, um poder que deveríamos recuperar daqueles que o
subvertem.
04/Out/2004
Ver também:
"How Many Iraqis Have to Die Before We Care?" por Tom Palaima, History
News Network (October 04 2004),
http://hnn.us/articles/printfriendly/7735.html
Iraqi Insurgents are Butchers, Yet Not as Bad as Us
por Ted Rall (September 28 2004),
"The Unfeeling President" por E L Doctorow, The East Hampton Star, New
York (September 09 2004),
http://www.easthamptonstar.com/20040909/col5.htm
O original encontra-se no
Newstatesman
e em
http://pilger.carlton.com/print
.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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