Lições gregas
A austeridade não é apenas um modelo de política
económica, nem sequer conjuntural: ela é um novo regime
político e social, uma
nova ordem.
Um governo legítimo de um Estado-membro da UE que usa do euro como
moeda, pergunta aos cidadãos se estão de acordo com as medidas
que os seus parceiros lhes queriam impor. Uma maioria muito ampla de
cidadãos, superando amplamente a base política que elegeu o
governo, disse não. Dias depois, o mesmo governo disse-se ter visto
obrigado a assinar um acordo que o obrigava a contradizer o essencial do seu
compromisso eleitoral. Que lições podemos tirar?
1. A austeridade eurocrática adotou-se, mantém-se e
impõe-se contra a democracia.
Concebida como uma nova ordem económica anti-social, pensada desde o
horror a todas as políticas promotoras da igualdade ou da simples
distribuição da riqueza por via fiscal para garantir um
mínimo de coesão social (a ilusão de que o Estado de Bem
Estar poderia, um dia,
humanizar
o
capitalismo
), a austeridade não é simplesmente a opção de
governos nacionais, no âmbito de uma soberania económica que
já não lhes resta. É, na prática, uma
imposição europeia (Comissão, BCE, a Alemanha e os seus
aliados), adotada num plano supranacional sem qualquer controlo
democrático minimamente efetivo, e que, por isso mesmo, se apresenta
como ungido de racionalidade técnica (esta ideia de que a austeridade
é uma questão técnica, que não discutível no
plano político), perante a qual os únicos decisores ainda
sujeitos a um mínimo de controlo democrático (os governos
nacionais) voluntariamente se declaram impotentes e/ou sem competência
para cumprir os compromissos assumidos com os seus eleitores, ou sequer acatar
as constituições dos seus próprios países. O euro e
o Tratado Orçamental (2012), na forma como evidentemente violentam
qualquer forma de autodeterminação dos povos dos Estados que
fazem parte da União Económica e Monetária (UEM) dentro da
UE e que, como a Grécia, queiram romper com a austeridade, revelaram-se
a materialização de um colete-de-forças político
que contraria toda a retórica de que até hoje nos quiseram
convencer, a de uma construção europeia baseada na solidariedade,
na partilha voluntária de recursos, na superação das
disputas económicas, uma
união
europeia imaginada como base sobre a qual se teria construído a
paz eterna no continente...
2 . Podemos regressar a
outra
Europa?
Um grande número daqueles que se mantêm fiéis à
ideia (eu diria
ilusão
) de que a construção europeia foi, desde os anos 50, outra coisa
muito diferente deste autoritarismo tecnocrático dos nossos dias, cujo
preço é pago essencialmente pelos países do Sul,
estão cada vez mais incómodos com esta
nova ordem
imposta por Berlim e Bruxelas, por Merkel/Schäuble, Djisselbloem e
Juncker. Falo essencialmente de setores da socialdemocracia que já
não sabem o que pensar da forma como os Hollande, os Gabriel, os Renzi
(ou os Sócrates e os Papandreou) adotaram sem reservas as várias
componentes (económicas, mas também políticas e culturais)
do
There Is No Alternative
thatcheriano, sabendo bem que as partilham com toda a direita de que se
dizem alternativa... Numa parte considerável da sociedade (sobretudo
nessa classe média que se imagina cidadã de uma Europa laica,
democrática e respeitadora dos Direitos Humanos), defende-se o regresso
a um projeto europeu
perdido,
, como se Schäuble fosse (e não é) a antítese de
tecnocratas como Schuman (o partidário de Pétain em 1940) e
Monnet (horrorizado com o controlo parlamentar da política
económica). Há que fazer uma reavaliação muito
crítica dessa génese profundamente elitista da
construção europeia, feita de
despotismo esclarecido
, e desta conceção e gestão das políticas europeias
sempre cheia de preconceito tecnocrático que entende como
populista
toda a crítica ao
europeísmo
rançoso e dogmático, que reivindica a soberania
democrática onde ela, mal ou bem, ainda se se tem a
sensação de se exercer: à escala nacional.
3. Uma lógica neocolonial e assimilacionista.
Voltaram ao debate público alguns dos impulsos essenciais em que
se
baseou no séc. XIX a dominação imperialista europeia:
relações de domínio baseadas na dependência
económica (o credor manda no devedor, fazendo-lhe crer que o faz para o
bem deste); a naturalização de uma hierarquia de povos e de
Estados, divididos entre os que são
verdadeiros
europeus e os que não passam de candidatos fracassados a
sê-lo (os PIGS), que devem ser sujeitos a um processo de
assimilação semelhantes aos que as potências coloniais
sujeitavam os colonizados; uma relação neocolonial, sob a forma
(assumida!) de protetorado económico. Quer-se reescrever toda a
história da integração europeia como se a adesão da
Europa do Sul tivesse sido resultado de uma ansiedade unilateral dos parceiros
do Sul, como se as economias do centro da UE (alemã, francesa,
holandesa, italiana, britânica,
) não beneficiassem
enormemente da liberdade de circulação de capitais, bens
transacionáveis e mão-de-obra barata oriunda de Portugal, da
Espanha ou da Grécia (ou da Europa Centro-Oriental)!
25/Julho/2015
Do mesmo autor em resistir.info:
Uma história em fascículos
[*]
Historiador.
O original encontra-se em
www.publico.pt/mundo/noticia/licoes-gregas-1703110
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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