Confrontação Norte-Sul
ou
aliança entre trabalhadores do Norte e povos do Sul?
Propomos aqui ao leitor uma série de reflexões sobre as
evoluções recentes das relações Norte-Sul e
Sul-Sul. Para isso, partiremos de um facto incontornável, a hegemonia
militar dos Estados Unidos, e de uma tendência, ligada à
duração e à gravidade da crise sistémica actual,
para o agravamento da confrontação entre o Norte e o Sul. Depois
examinaremos a amplitude e a profundidade das recentes experiências de
regionalizações alternativas e de avanço sociais na
América Latina, antes de interrogar a pertinência da
reaproximação, ou da reconexão, do continente
latino-americano com a Ásia e a África, desenrolando o fio da
Tricontinental até a uma eventual "extensão" destas
regionalizações radicalmente novas para os continentes
asiático e africano. No momento actual, os povos do Sul, e também
do Lete, puseram-se em movimento. A importância deste acontecimento
é amplamente e voluntariamente subestimada pelos media dominantes dos
países do Norte, mas deve reter a atenção dos
trabalhadores que desejam melhorar a natureza as relações que
seus governos mantém com o Sul e o Leste e construir um "mundo
melhor", portanto multipolar e justo.
UM FACTO INCONTORNÁVEL: A HEGEMONIA MILITAR DOS EUA
Para os países do Sul e do Leste , o contexto actual
é extremamente difícil em primeiro lugar e sobretudo devido
à hegemonia global incontestada dos Estados Unidos no plano militar.
Apesar de situado atrás da China e da Índia, o efectivo dos
diferentes corpos das forças armadas estado-unidenses no seu conjunto (
Army, Navy, Marine Corps, Air Force
), incluindo aquelas em actividade no território nacional metropolitano (
Continental United States
), ultrapassavam oficialmente 1 430 000 militares no fim de 2010,
segundo dados do Ministério da Defesa dos EUA (
Active Duty Military Personnel Strengths by Regional Area and by Country 309A
). Mas o esforço de guerra efectuado em várias frentes implicaria
muito mais pessoal.
Bases militares e soldados estado-unidenses no mundo
Os efectivos militares estado-unidense diminuíram fortemente logo
após a explosão da URSS e do bloco soviético em 1991, para
aproximar-se em 2000 dos 1 384 000 soldados. Os acontecimentos do 11
de Setembro de 2001 travaram este recuo e, desde 2002, estes efectivos foram
reorientados em alta, até exceder os 1 425 000 em 30 de
Setembro de 2011. A isto acrescentam-se 770 000 empregados civis do
Ministério da Defesa dos Estados Unidos. O número de pessoas que
servem nas forças armadas e não têm a nacionalidade
estado-unidense duplicou em cinco anos e atingiu cerca de 60 000 soldados
em 2010. Esta inflexão desde 2001-2002 deve-se sobretudo à
evolução do pessoal militar activo fora do território
nacional, pelo que a proporção nos efectivos globais aumentou
brutalmente com o desencadeamento das guerras contra o Afeganistão
(2001) e o Iraque (2003), passando de 16,3% para 30,4% entre 2001 e 2003. Em
2007, esta parte ultrapassou mesmo os 39,0%, ou seja, mais do que em qualquer
outro momento da história dos Estados Unidos desde o fim da Segunda
Guerra Mundial. No auge da guerra do Vietname, esta proporção
não excedia os 36,0% (1967). Dois anos após a retirada do Iraque
e da relocalização das tropas no Afeganistão, em 2010, a
parte do pessoal militar activo no estrangeiro era de 34,9%, ou seja, mais que
durante a guerra da Coreia (34,2% em 1954) ou que no fim da Guerra Fria (29,8%
em 1990).
Além de serem incompletas, as informações fornecidas pelo
US Department of Defense
não poderiam ser analisadas sem acrescentar as tropas estado-unidenses
directamente implicadas nos conflitos do Iraque e do Afeganistão. Estas
últimas são efectivamente contabilizadas à parte, num
documento anexo disponível somente desde 2004 (
Deployments (not complete)
), o qual regista os efectivos militares deslocados no quadro das
operações
Iraqi Freedom
(OIF, a partir de Março 2003), depois
New Dawn
(OND, a partir de Setembro 2010) no Iraque e
Enduring Freedom
(OEF, desde Dezembro 2004) no Afeganistão.
Uma primeira estimativa do total dos efectivos das forças armadas
estado-unidenses deslocados no mundo em 30 Setembro 2011 é dada
adicionando aos 201 167 militares estacionados no território
nacional fora do
Continental United States
(Alasca, Havai, Guam, Porto Rico
) e aos 205 118 outros soldados
presentes em países estrangeiros, incluindo ai 59 680
"não repartidos", as tropas empregues no Iraque (92 200
militares no fim de 2011) e no Afeganistão (109 200 na mesma data),
ou seja, 548 105 soldados. Este número deve ser revista em alta.
São desejáveis reajustamentos para aproximar da realidade os
efectivos contabilizados pelos
Active Duty Military Personnel Strengths.
O pessoal das forças armadas e serviços de
informação implicados nas acções secretas é
difícil de avaliar, mas provavelmente elevado. Tendo em conta esta
dificuldade, optaremos por proceder a um ajustamento complementar, externo aos
efectivos das forças armadas estado-unidenses propriamente ditas e
relativo aos agentes das sociedades militares privadas que apoiam as
intervenções das forças regulares. Estas sociedades
privadas actualmente impõem-se como actores importantes na maior parte
dos lugares de conflitos por todo o mundo; inclusive para o próprio
Pentágono, que se tornou seu cliente principal.
As guerras travadas no Iraque e no Afeganistão constituem exemplos da
ascensão das actividades destas sociedades, em que a sua
utilização pela administração estado-unidense
é generalizada. Estes dois países são os terrenos de
acção do "novo mercado da guerra" e de
mercenários encarregados de missões tácticas. Assim, o
número de agentes mobilizados por estas sociedade militares privadas
poderia ser de 186 000 no Iraque (número disponível para
2008) e de 110 000 no Afeganistão (2009). Se estas estimativas
forem fiáveis, os efectivos de agentes empregado por estas sociedades
privadas teriam ultrapassado os das forças armadas dos Estados Unidos
tanto no Iraque como no Afeganistão. Os mercenários
estado-unidenses a participarem nos combates no Iraque seriam mais numerosos
que os seus compatriotas a servirem nos corpos dos
Marines
, da
Navy
e da
Air Force
; ao passo que o número daqueles empenhados na guerra do
Afeganistão em 2009 teria excedido o dos soldados estado-unidenses
adstritos à força aérea e à marinha.
Propomos portanto dois reajustamentos possíveis, consistindo em
incorporar ao cálculo dos efectivos militares estado-unidenses em
actividade no estrangeiro o pessoal destas sociedade militares privadas
envolvido nas guerras do Iraque e do Afeganistão (hipótese baixa)
ou no mundo (hipótese alta), supondo um número médio de
agentes privados de 100 a trabalhar em cada uma das 930 bases militares
situadas fora do Iraque e do Afeganistão oficialmente reconhecidas pelo
Departamento da Defesa. Sob a primeira hipótese, nós nos
situaríamos em cerca de 843 200 pessoas, ou seja, um nível
comparável àquele do tempo da intervenção no
Vietname (entre os 832 364 militares além-mar em 1965 e os
875 432 em 1970). Sob a segunda, estaríamos, com mais de
935 700 pessoas afectadas em 2011, acima do recorde histórico do
pós Segunda Guerra Mundial (927 851 soldados estado-unidenses em
missão no exterior).
Mas onde estão disseminados? E de quantas bases militares os Estados
Unidos dispõem hoje no mundo? O
US Department of Defense
divulga informações relativas às bases dos EUA no mundo (
Base Structure Reports
). Em 2011, como vimos, o Ministério da Defesa reconhecia a
existência de 930 bases, numa trintena de países estrangeiros e
uma dezena de territórios não continentais dos EUA. A
repartição destas bases mostra dentre os países mais
destacados a Alemanha (194 bases), o Japão (119), a Coreia do Sul (82),
o Reino Unido (33), Portugal (21), a Turquia (17), ... Estimativas do
número de instalações (em torno de 70) utilizadas pelos
EUA no Afeganistão e no Iraque, que não fazem parte desta lista,
conduziriam a uma rede mundial de aproximadamente 1000 bases, ou seja, quase
tanto quanto durante a fase de extensão máxima a guerra do
Vietname.
Evidentemente, as informações das
Base Structure Reports
minimizam o número de bases estado-unidenses, por várias
razões. Os dados estatísticos estão em falta para
numerosos países (somente cerca de 40 Estados independentes são
contabilizados). A título de exemplos para 2011, citemos a Itália
(a qual acolheria pelo menos 50 bases), Cuba (onde, desde 2001, a base de
Guantánamo serve de lugar de detenção para centenas de
prisioneiros de guerra do Afeganistão), Honduras (na qual não
está integrada a base de Soto Cano, contudo em funcionamento durante o
golpe de Estado de 2009), mas também o Qatar (pelo menos 9 bases)... Nos
outros países, o número de instalações é
subestimado: no Kuwait (apenas 1 base referenciada), na Colômbia
(oficialmente 7), na Turquia... Certos países que acolhem bases
militares dos Estados Unidos não são mencionados nestes
documentos oficiais: Israel (pelo menos 5 bases em actividade), Filipinas
(mínimo de 2) ou na ex-União Soviética.
Efectuando as correcções exigidas sob hipótese minimalista
pela integração apenas das instalações
mencionadas e considerando uma hipótese média realista (de
180) para o número de instalações utilizadas no Iraque e
no Afeganistão, chegamos a um total geral de bases militares
estado-unidenses no mundo que em 2011 ultrapassa 1 150; ou seja, mais do
que no ponto histórico mais alto registado desde o fim da Segunda Guerra
Mundial (1946). Isto, sem sequer falar das bases secretas. O meio milhão
de soldados estado-unidenses disseminados nesta vasta rede de 1 150 bases
militares pode também contar com as
facilities
militares postas à disposição pelos seus aliados do
Norte, nomeadamente no quadro de operações conduzidas pela
Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) ou em
aplicação de outros acordos internacionais.
O apoio dos outros países do Norte e a tendência à
confrontação com o Sul
Na rede de instalações que cobre todo o globo, o país da
União Europeia mais estreitamente integrado ao dispositivo militar
estado-unidense é o Reino Unido. As
permanent joint operating
bases britânicas estão localizadas em pontos estratégicos:
extremidades ocidental e oriental do Mar Mediterrâneo (Gibraltar,
Chipre), Atlântico Sul na proximidade do Estreito de Magalhães
(ilhas Falkland), no meio do Oceano Índico (Diego Garcia). Esta rede
é completada pela base da ilha de Ascensão no Atlântico e
pelas instalações situadas em Singapura (à
disposição das forças britânicas e de seus aliados).
A implantação mais numerosa do Reino Unido é em Chipre,
com um efectivo que se aproxima dos 3 000 soldados estacionados em
permanência, ao passo que a
Royal Navy
está presente ao longo das costas cipriotas. O
British Indian Ocean Territory
de Diego Garcia é tão estratégico, nomeadamente para o
acesso aos teatros de operação na Ásia, que a
utilização das suas instalações foi cedida à
US Air Force em 1966.
Quanto às forças armadas francesas, as activas instaladas no
resto do mundo compreendem três tipos de forças: "de
soberania", dispersas nas colectividades que fazem parte do
território nacional da França; "de presença",
posicionadas em África, nas zonas marítimas dos Oceanos
Índico e Pacífico e, mais recentemente (fim de 2009), na
península arábica; finalmente, "operações
externas", a título nacional (no continente africano, no essencial)
ou multinacional (em quase todas as regiões). O dispositivo de controle
militar posto em prática pela França situa-se numa faixa
horizontal que cobre toda a circunferência do globo. Sem dispor de uma
rede de amplitude comparável, outros países europeus
também oferecem aos Estados Unidos pontos de apoio estratégicos:
a Espanha (ao longo das costas marroquinas, com as ilhas Canárias, e
à entrada do estreito de Gibraltar, graças aos enclaves de Ceuta
e Melilla), Portugal (com os Açores e Madeira), a Itália (com as
ilhas ao largo da Tunísia), a Grécia (Sauda), a Dinamarca
(Gronelândia) ou os Países Baixos (com suas possessões
caribenhas, Aruba, Curaçao e os conjuntos insulares das Antilhas
holandesas que barram o Mar das Caraíbas desde o Norte das costas
venezuelanas até o Leste de Porto Rico).
Na outra extremidade do globo, a Austrália e a Nova Zelândia
também desempenham um papel chave. À medida em que as bases
estado-unidenses se foram reposicionando na direcção da
Ásia, a Austrália tornou-se um aliado fundamental. Sua esfera de
influência cobre o Pacífico Sul, assim como, no Sudeste da
Ásia, Timor Oriental. A aceitação desta zona pelos outros
países da triade não exclui rivalidades e tensões
nomeadamente com a França que tem possessões na região, ou
o Reino Unido que mantém influência sobre suas antigas colonias.
Esta missão de "polícia regional" é assegurada
em parceria com a Nova Zelância, cujos interesses próprios
situam-se sobretudo na Polinésia. Os Estados Unidos sujeitam o conjunto
através de um gigantesco arco de círculo, para além do
Hawai, dos atols Johnston, Wake e Midway sob administração
militar e das Line Islands, graças ao controle sobre Palau, Guam,
federação da Micronésia, Commonwealth das Marianas do
Norte e as Samoa americanas.
A vastidão do sector da defesa na economia estado-unidense não
poderia ser subestimada. Hoje, as despesas militares da hegemonia mundial
situam-se próximas dos 6% do PIB. Qualquer que seja o critério de
militarização considerado, ressalta uma superioridade total dos
Estados Unidos tanto em relação a seus aliados do Norte como a
seus rivais do Leste e do Sul (Rússia, China, ...). Isso entretanto
não quer dizer que saiam seguramente vencedores das guerras em curso (ou
daquelas a vir: Síria, Irão, mesmo China?). Parecem reunidas as
condições para que uma das consequências mais graves da
crise sistémica que vivemos seja a aceleração da drenagem
de capitais internacionais pelos Estados Unidos e o agravamento da
confrontação Norte-Sul. Hoje, crise capitalista e guerra
imperialista estão imbricadas. Elas assim estão sobretudo porque
a guerra está integrada no ciclo, economicamente, enquanto forma extrema
de destruição de capital, mas também politicamente pela
própria reprodução das condições de
manutenção do comando da alta finança
fracção dominante das classes dominantes sobre o sistema
mundial. O assalto que nos EUA os oligopólios financeiros
lançaram sobre o complexo militar-industrial assegurou-lhes um controle
do sector. Neste processo, o papel do Estado foi determinante para o capital
pois é este que entra em guerra por conta daquele. Sifonagem de
recursos mundiais e utilização da força armada participam
da mesma lógica, ao passo que a multiplicação das
intervenções armadas travadas sob a condução dos
Estados Unidos, directamente (por exemplo, no Iémen, onde o
Pentágono e a CIA foram convidados pelo presidente Obama a colaborar) ou
não (por intermédio da NATO, como na Líbia) exacerbam
sempre mais as contradições internas do sistema capitalista. A
situação presente assemelha-se menos ao começo do fim da
crise do que ao começou de um longo processo de degradação
da etapa actual do capitalismo financiarizado, a qual abre perspectivas de
transição e insta a interrogações sobre as
alternativas de transformações pós capitalistas.
A AMÉRICA LATINA: NOVA INDEPENDÊNCIA E AVANÇOS SOCIAIS
O espírito de uma "segunda independência" sopra hoje na
América Latina. Ele é sentido nas experiências de
regionalizações alternativas registadas desde há mais de
uma década, assim como nos avanços de forças progressistas
ao nível nacional e da solidariedade ao nível internacional.
As regionalizações alternativas: a "segunda
independência"
A marcha rumo à união dos países latino-americanos
experimentou etapas decisivas desde o princípio da década de
2000. Uma primeira vitória foi a rejeição do projecto
ultra-liberal estado-unidense da Zona de Livre Comércio das
Américas (ALCA), pela convergência de mobilizações
populares das sociedades civis e a posição comum de
resistência adoptada, apesar das suas diferenças, pelos governos
progressistas do continente. A estocada contra a ALCA foi dada aquando da
Cimeira de Mar del Plata em 2005, durante a qual os Estados do Mercado Comum do
Sul (Mercosul, reunindo Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguais e Venezuela)
disseram não às ambições de dominação
de Washington. Um segundo avanço foi o lançamento quase
simultâneo do ALBA (Alternativa bolivariana para os povos da nossa
América) por Cuba e pela Venezuela fim de 2004. É no seu
seio que hoje está desenvolvida toda uma série de missões
sociais destinadas a melhorar as condições de vidas dos povos,
nos domínios da saúde, da educação, da
alimentação, da habitação... Voltar-se-á ao
assunto. Em paralelo, foram lançadas várias iniciativas
regionais, como a criação de um Banco do Sul (BancoSur) ao qual
estão associados dois pesos pesados do continente, Brasil e Argentina,
mas também, desta vez no quadro do ALBA, o acordo instituindo um novo
sistema de unidade de conta entre países membros, o "Sucre".
No fim de 2004 foi assinada também a "Declaração de
Cuzco", que preparava a criação de uma nova
organização supranacional que deverá reunir os cinco
países do Mercosul: Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Venezuela,
já citados, os membros da Comunidade Andina das Nações:
Colômbia, Peru, Equador, Bolívia, Chile (que permanece muito
ligado aos Estados Unidos), mas a Guiana e o Suriname. A União das
Nações Sul-Americanas (UNASUR), reunindo 12 países da
América do Sul, foi lançada em meados de 2008, em
Brasília, com o objectivo de criar uma moeda, um passaporte e um
parlamento comuns. O "Grupo do Rio" começa igualmente a
desempenhar um papel importante, nomeadamente na resolução de
conflitos regionais, como foi o caso, por exemplo, em Março de 2008,
quando uma guerra entre a Colômbia, por um lado, o Equador e a Venezuela,
por outro, foi evitada
in extremis.
É nesta dinâmica de apaziguamento das tensões e de
tentativas de reaproximações que recentemente os acontecimentos
ainda se aceleraram. No princípio de Dezembro de 2011, os chefes de
Estado de 33 países da América Latina e das Cariba reuniram-se em
Caracas para criar a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos
(CELAC). A originalidade desta instituição é reunir pela
primeira vez a totalidade dos países soberanos da região... sem
ali associar os Estados Unidos (nem o Canadá). Se os avanços
precisos que permitirão realizar a CELAC permanecem indistintos, e se
ainda não é possível afirmar que suas
orientações serão necessariamente progressistas, sua
colocação em andamento constitui em si mesmo um acontecimento de
alcance histórico. Finalmente, os povos latino-americanos e caribenhos
propuseram-se conduzir sua regionalização numa perspectiva nova:
a da tomada de distância e da independência em
relação a seu(s) vizinho(s) do Norte. É portanto todo o
Sul que está interessado nestas iniciativas.
Até o princípio dos anos 2000, os processos de
regionalização iniciados na América Latina sempre foram
instrumentalizados ou neutralizados pelos Estados Unidos, quando estes
últimos não eram eles próprios encarregados de os
conceber. O facto é conhecido: os objectivos de dominação
estado-unidense foram expressos desde o fim do século XVIII, depois
sistematizados pela doutrina Monroe no século XIX. Suas agressões
militares repetidas, lançadas sob o pretexto de "proteger as vias e
os interesses americanos", haviam-lhes proporcionado uma zona de
influência no hemisfério ocidental, quase exclusiva na
América Central e nas Caraiba. O controle dos Estados Unidos sobre a
região reforça-se no princípio da Guerra Fria com a
criação em 1948 da Organização dos Estados
Americanos (OEA), que para eles era um lugar de distorsão das
políticas internas e externas dos países latino-americanos. A
consequência da criação da CELAC é a
marginalização
de facto
da OEA. Alguns, como o presidente Chavez, falaram em
"substituição"; outros, do lado mexicano ou chileno, de
"complementaridade". Mas o resultado está lá: a OEA, e
através dela os Estados Unidos, não decidirão mais o
destino da América Latina. Da maneira muito simbólica, os
participantes entenderam-se, por unanimidade, para que o país hospedeiro
do encontro seguinte da CELAC fosse... Cuba país excluído
da OEA desde 1962 por "incompatibilidade com o sistema
interamericano"
(sic).
Se bem que a CELAC não tenha por enquanto nenhuma
aplicação prática verdadeira e que ela se choque com
múltiplos bloqueios devidos em particular aos conflitos
ideológicos existentes no seu seio e às arbitragens entre os
benefícios desta comunidade e a rendas extraídas dos acordos
comerciais bilaterais com os Estados Unidos , imagina-se sem dificuldade
o impacto positivo que poderia produzir a orientação progressista
de uma tal integração. Mas a mudança está realmente
em marcha. Pois é a América Latina e Caribenha que doravante
recusa ver Washington impor suas decisões ao resto do hemisfério.
Desenha-se uma ampla frente de resistência do Sul, o que permite prever a
formação a prazo de um contrapeso ao hegemonismo estado-unidense,
unipolar, e que hoje se esforça por minimizar tanto quanto
possível a amplitude do sismo que está em vias de verificar-se.
Avanços sociais e solidariedade internacionalista: dois exemplos
A última vitória até à data das forças
progressistas no continente sul-americano registou-se a 12 de Outubro de 2014,
quando, com mais de 60% dos sufrágios, Evo Morales ganha a
eleição presidencial e inicia seu terceiro mandato à testa
da nova Bolívia; aquela que está em vias de se construir na
dignidade e identidade reencontradas do seu povo; aquela da
recuperação dos recursos naturais finalmente
redistribuídos pelas políticas sociais do
Bien Vivir
(bem viver); aquela do respeito pelo ambiente (a
Pachamama,
a terra mãe).
É princípio compreender desde o princípio: a
Bolívia é, sobretudo, índia. Uma excepção na
América do Sul: seu povo é constituído maioritariamente
por "nativos"
(originarios).
Dois terços dos seus cidadãos reivindicam sua origem
índia: quechua, aimara, guarani... Até há pouco, todos os
poderes eram confiscados pelos 15% de bolivianos brancos de origem europeia. A
história do país caracteriza-se ao mesmo tempo por uma
instabilidade crónica, ligada às tendências putchistas de
uma parte das forças armadas que as levaram a sustentar uma série
de ditaduras (inclusive a junta do general Banzer de 1971 a 1978), e pela
combatividade das lutas de um povo politizado, lúcido. Durante muito
tempo, as reivindicações da esquerda foram impulsionadas pela
Central Obrera Boliviana (COB), ligada ao Partido Comunista e organizando, em
torno dos sindicatos de mineiros, experimentados e poderosos, amplas faixas do
mundo do trabalho.
No decorrer das décadas 1980-1990, os golpes assestados pelo
neoliberalismo (da contracção dos orçamentos
públicos à privatização de minas, passando pela
liberalização da agricultura) desestruturaram ainda mais esta
sociedade, uma das mais pobres do continente. A brutalidade destas medidas,
impostas sob a férula do Fundo Monetário Internacional, foi ainda
mais duramente ressentida porque a miséria ali era maciça, tanto
na cidade como no campo. Um dos efeitos deste desastre económico foi
engrossar o fluxo de migrações de famílias de
desempregados das regiões mineiras e de camponeses arruinados dos altos
planaltos para as favelas urbanas e as zonas rurais menos áridas. Sem
recursos para sobreviver nem possibilidade de produções
alternativas, muitos reconverteram-se na cultura das folhas de coca,
organizando-se muitas vezes segundo o modelo sindical. Bastante rapidamente,
estes novos movimentos índios dotaram-se de estruturas
partidárias tendo em vista defenderem seus interesses no combate
político para a transformação social. Os acontecimentos
aceleraram-se nos anos 2000, neste contexto de mutações profundas
e na sequência de descobertas de jazidas de hidrocarbonetos que incharam
as reservas de gás e de petróleo do país e atraíram
os investidores estrangeiros. A rebelião do mundo operário e
camponês ganha o conjunto do povo e o dinamismo dos movimentos sociais
coloca a Bolívia na primeira linha das exigências de controle
público dos recursos naturais enquanto patrimónios ou bens comuns
que devem estar sob a responsabilidade de toda a colectividade
(manifestações contra a privatização da
água, nomeadamente).
Uma reivindicação das organizações de massa era,
desde há muito, a nacionalização das reservas de
petróleo e de gás, exploradas por firmas estrangeiras e
cuja contribuição ao orçamento do Estado lhes assegurava
uma influência determinante sobre o país. A "ajuda"
estado-unidense, que atingia até 10% do produto interno bruto e era
destinada tanto a erradicar a produção de coca como a reprimir as
"perturbações sociais", fazia o resto... Naquela
Bolívia, o povo sonhava com direitos à
auto-determinação, à democracia e ao desenvolvimento, mas
em privado. O sonho não se tornou realidade senão com a
ascensão de Evo Morales à presidência. As vitórias
obtidas na eleição presidencial de Dezembro de 2005, e depois
pelo seu partido, o Movimento para o Socialismo (MAS), nas legislativas
seguintes, marcaram o arranque da revolução indígena.
Estes acontecimentos de dimensão histórica têm uma
ressonância universal e apresentam ao mundo o exemplo do ressurgimento e
da emancipação de povos indígenas cuja inclusão
limitada na vida política favorecia até então a
fragmentação e a subordinação. Antes disso, foi-lhe
necessário remover os representantes da oligarquia local obediente aos
diktats estado-unidenses a fim de tornar possível a
eleição à testa do Estado de um líder popular que
restaura a esperança.
O carácter autenticamente progressista do novo governo boliviano,
anti-neoliberal e anti-imperialista, surgiu com clareza no momento da
nacionalização dos hidrocarbonetos (Maio 2006). A
recuperação dos recursos naturais, arrancados ao país pelo
neoliberalismo, modifica as proporções detidas pelas
transnacionais e o Estado na estrutura de propriedade do capital do sector: 82%
para este, 18% para aquelas, contra o inverso que se verificava anteriormente.
A intervenção sem confisco nem expulsão constrangeu as
companhias petrolíferas em actividade no território boliviano a
renegociar os contratos de concessão em curso. A retomada do controle da
estratégia energética pelo Estado efectua-se por uma sociedade
pública encarregada das operações de
transformação, refinação,
comercialização e transporte do petróleo e do gás
do país. Ainda que esta indispensável reconquista
da soberania nacional se tenha efectuado com dificuldades e
oposições, doravante a grande parte das receitas decorrentes da
gestão destes recursos naturais é dirigida para as prioridades do
Estado a fim de melhorar a sorte do seu povo e o desenvolvimento da economia.
O futuro dirá o que é possível transformar do Estado
Plurinacional da Bolívia, no sentido de avanços mais pronunciados
na transição socialista. Na expectativa, em 12 de Outubro, foi
aos líderes internacionalistas emblemáticos das
revoluções cubana e venezuelana, Fidel Castro e Hugo Chavez,
assim como aos povos hoje em luta contra o capitalismo e o imperialismo, que
Evo Morales, em nome dos bolivianos, dedicou sua vitória.
O melhor exemplo de solidariedade internacionalista é o das
missões médicas cubanas. Como se sabe, Cuba respondeu aos apelos
da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da
Organização das Nações Unidas (ONU) para o envio de
equipes médicas a fim de lutar contra a epidemia de ébola que
afecta a África Ocidental (sobretudo a Serra Leoa, a Libéria e a
Guiné). Desde meados de Novembro de 2014, 165 profissionais de
saúde cubanos especializados na luta anti-ébola estão a
trabalhar na Serra Leoa, 50 na Libéria e 35 na Guiné 15
outros devem chegar à Guiné-Bissau. A estratégia adoptada
foi combater a epidemia em simultâneo sobre o terreno e de maneira
preventiva, com formação de pessoal médico pronto a
enfrentar uma eventual extensão da doença. Outros profissionais
preparam-se para substituir as equipes no terreno. Também se
mantém pronta para partir a brigada médica Henry Reeve
especializada nas intervenções em caso de catástrofes
naturais, que já efectuou missões em África, assim como no
Paquistão e no Haiti.
Esta é, até o momento, de longe, a oferta mais generosa de
especialistas no controle de doenças infecciosas e
epidemiológicas recebida pela OMS. Estes médicos e enfermeiros
cubanos foram treinados intensamente no Instituto de Medicina Tropical Pedro
Kouri, de Havana, para se prepararem quanto a protocolos de segurança e
manipulação dos materiais de protecção. Aquelas e
aqueles que partiram para lutar contra o ébola são
voluntários. Para constituir estas brigadas, foi lançado um
apelo: 15 mil cubanas e cubanos apresentaram-se como voluntários. Os 165
que foram enviados à África foram seleccionados entre estes 15
mil. Todos de alto nível e experimentados, optaram por deixar
famílias e amigos para irem salvar o maior número possível
de vidas no continente africano. Este é o sentido da sua
existência e esta é a mensagem de coragem e de humanidade com que
o povo de Cuba e seu governo se dirigem ao mundo. Apesar das dificuldades que
tem de enfrentar (um bloqueio!), este país encontrou em si as
forças, os recursos e as pessoas para assim agir. Cada um(a), no seu
foro interior, julgará o que é preciso pensar.
Para Cuba, esta decisão é a continuação da
cooperação médica efectuada em acordo com os países
africanos. Para além desta contribuição à luta
contra o ébola, 4 048 trabalhadores cubanos da saúde, dentre
os quais 2 269 médicos, participam actualmente em missões em
32 países do continente. Desde o arranque da revolução
cubana, em 1959, cerca de 77 mil médicos e enfermeiros participaram de
brigadas de saúde cubanas nos 39 países da África. Ainda
recentemente, mais de 36 mil pacientes africanos beneficiaram da missão
Milagro,
pela qual puderam recuperar a vista ou melhorá-la, nomeadamente
aqueles operados da catarata. A acrescentar-se a isto, numerosos estudantes
originários da África são hoje formados nas escolas de
medicina de Cuba ou, para outros, no seu próprio país. Desde
1959, 3 392 médicos africanos, originários de 45
países, foram formados em Cuba graças a bolsas de estudo
concedidas pelo governo cubano.
Cuba actualmente está presente em 66 países com mais de 55 mil
trabalhadores da saúde, a metade sendo médicos. Dois
terços dentre eles são mulheres, exercendo muitas vezes em
condições extremamente difíceis, até nas montanhas
do Paquistão. Resultados de 55 anos de solidariedade: 595 mil
missões cumpridas em 158 países, 325 mil profissionais da
saúde envolvidos, 12 milhões de crianças vacinadas, 8
milhões de intervenções cirúrgicas, 2,2
milhões de partos acompanhados, mais de 1 200 000 000
consultas médicas... Cuba fornece, por si só, mais pessoal
médico aos países do Sul que o G7. Estados Unidos, Japão,
Alemanha, França, Reino Unido, Itália e Canadá, ou seja,
mais de 36 milhões de milhões de dólares de riquezas
produzidas (cerca da metade do rendimento mundial, mas com 10% da
população do globo)... contra apenas 65 mil milhões em
Cuba (e 11 milhões de habitantes, menos que o Niger). "Dinheiro e
material são importantes", declara o Sr. Chan, director-geral da
OMS, "mas o mais importante são as pessoas, que experimentam
compaixão, médicos e enfermeiros que sabem reconfortar seus
pacientes. Cuba é mundialmente conhecida pela sua capacidade de formar
excelentes médicos e enfermeiros. O país é reconhecido
pela sua generosidade e sua solidariedade para com os países em marcha
para o progresso. (...) Cuba é um exemplo". Os Estados Unidos, pela
voz do presidente Obama, também permanecem fiéis à sua
reputação: enviaram um contingente de 3 000 militares
à África.
RECONECTAR ÁSIA, ÁFRICA E AMÉRICA LATINA
Da Tricontinental
a ALBAs africanos e asiáticos?
Aquando da cimeira da ALBA, em Outubro 2014, foi decidido que os seus membros
responderiam positivamente aos pedidos da OMS e da ONU enviando recursos
financeiros e humanos, mas também preparando-se para enfrentar um
eventual estado de crise sanitária. Profissionais cubanos estão
em acção para formar equipes de especialistas bem preparados no
México, na Bolívia, na Nicarágua... No fim de Outubro de
2014 houve também em Havana um encontro de cientistas dos países
da ALBA e da CELAC, ao qual foram convidados especialistas originários
da região e também do Canadá e dos Estados Unidos.
Certamente, o espírito de Bandung sopra hoje na América Latina e
Caribenha.
Cuba teve um papel fundamental pioneiro na história da
conexão das lutas da Ásia e da África com a América
Latina, no rastro da conferência de Bandung (1955). De 3 a 12 de Janeiro
de 1966 houve em Havana, "no olho o ciclone", a primeira
Conferência de Solidariedade com os Povos da Ásia, África e
América Latina, ou "Tricontinental". A OSPAA, que reunia
representantes dos povos da Ásia e da África, nascida uma
década antes no Cairo, era ampliada para um novo continente,
então a fervilhar desde a vitória da revolução
cubana, e tornava-se a OSPAAL, que denunciava o imperialismo estado-unidense
como o inimigo comum das jovens nações do Sul e seu principal
agressor. Um ano e meio depois, de 31 de Julho a 10 de Agosto de 1967,
novamente na capital cubana mas sob os retratos de Simon Bolivar e do che,
reuniam-se os movimentos revolucionários de 22 países da
América Latina (mais uma "delegação honorífica
dos Estados Unidos" dirigida pelo futuro líder dos
Black Panthers
), na reunião da Organização Latino-Americana de
Solidariedade (OLAS). Este Sul, ou "Terceiro Mundo", não era
nem melhor nem pior que hoje, mas estava de pé e procurava se unir para
se libertar. Conhece-se suas grandes figuras, que encetaram a luta a contra a
injustiça insuportável do sistema mundial capitalista: Sukarno,
Hô Chi Minh, Zhou Enlai, Mehdi Ben Barka, Amilcar Cabral, Patrice
Lumumba, Frantz Fanon, Julius Nyerere
e tantos outros. O povo de Burkina
Faso, que hoje se levanta, recorda-se de Thomas Sankara e de todos eles. E se
este tempo retornasse? Talvez, por exemplo, graças a uma
reactivação da iniciativa América do Sul
África (ASA), concebida há alguns anos pelo presidente Chavez? Ou
então pela difusão rumo à Ásia e África dos
ideais que hoje animam o ALBA?
Depois de ter impedido a entrada em vigor da ALCA, em alguns meses os povos da
América Latina pelo menos aqueles cujos governos se haviam
inclinado à esquerda chegaram a passar à contra-ofensiva,
graças à ALBA. Esta aliança, imaginada desde o fim de 2001
como regionalização anti-ALCA, foi pensada como uma alternativa
radical às integrações correias de transmissão da
mundialização neoliberal, do tipo ALENA, o Acordo de Livre
Comércio da América Norte que esmaga a economia mexicana. A ALBA
foi lançada em Dezembro de 2004 em Havana por um acordo dos presidentes
cubano e venezuelano, Fidel Castro e Hugo Chávez, colocando as
condições para uma autonomia reforçada dos países
latino-americanos. A base é a solidariedade entre povos soberanos,
excluindo toda interferência dos Estados Unidos. Entrada em vigor em
Abril de 2005, a ALBA foi ampliada pela integração da
Bolívia do presidente Evo Morales (Abril 2006), da Nicarágua de
Daniel Ortega (Janeiro 2007), depois da Dominica (Janeiro 2008) e de Honduras
(Agosto 2008, graças ao presidente Zelaya, derrubado por um golpe de
Estado militar em Junho de 2009 do qual uma das consequências foi a
ruptura com a ALBA), de Saint-Vicent e Grenadines e Antigua e Barbuda (meados
2009) e do Equador do presidente Rafael Correa (Junho 2009).
O acesso ao petróleo venezuelano e ao maná financeira que ele
proporciona constitui evidentemente uma motivação de parceiros
com recursos limitados. O importante está alhures, pois a ALBA é
portadora de profundas transformações à escala
continental. Na óptica bolivariana de uma "federação
de nações", a ALBA busca o fundamento de uma
estratégia de integração impulsionada não mais
pelos princípios da maximização do lucro e das
"vantagens comparativas", mas por aqueles da
cooperação, da solidariedade e da complementaridade. Ela se
inscreve no espírito da Carta das Nações Unidas sobre a
cooperação internacional e da Declaração da
Assembleia Geral sobre o direito ao desenvolvimento. Pela
promoção das missões sociais (alimentação,
saúde, educação, habitação, emprego, ...), o
objectivo é de os continentalizar nos novos países membros, de os
adaptar às exigências locais e de os colocar ao serviço dos
povos. A prioridade imediata das acções conretas que são
conduzidas vai para a melhoria das condições de existência
do maior número e da participação popular no projecto de
partilha mais justa das riquezas. Uma inovação consistiu num
fundo de compensação para a convergência estrutural, cuja
finalidade é tentar eliminar alguns dos obstáculos ao
desenvolvimento e tratar de modo preferencial os países mais pobres.
Assim, apoia-se financeiramente, com respeito pela soberania nacional dos
Estados signatários, os esforços que desenvolvem seus governos
nacionais e colectividades locais a fim de formular políticas que
favoreçam o crescimento de sectores sociais e das infraestruturas, a
reapropriação dos solos e dos recursos naturais, a
diversificação da economia, o impulsionamento de agriculturas
respeitosas das massas camponesas, das produções industriais
orientadas mais para as necessidades internas ou certas
exportações com forte valor acrescentados que possam por em causa
a divisão internacional do trabalho.
O motor da ALBA, processo de integração dos povos
latino-americanos, é impulsionado pelos Estados. Mas a
concepção das forças motrizes da
regionalização foi ampliada de modo a associar às
negociações, ao lado dos governos parceiros, o maior
número possível de representantes de movimenos sociais
solidários com esta dinâmica continental e activos, inclusive nos
países não membros da ALBA. Aos princípios iniciais, como
a autodeterminação e a complementaridade das economias parceiras,
a igualdade e a justiça nos intercâmbios, a
integração das políticas energéticas ou a
cooperação tecnológica, vieram-se acrescentar novos
objectivos, tais como a reactivação da solidariedade entre os
países do continente, a busca da soberania alimentar, a luta contra a
exclusão social, a defesa dos direitos humanos na acepção
mais ampla (civis, políticos, económicos, sociais,
pluri-culturais...), a preservanção do ambiente. O conceito de
regionalização evoluiu assim no sentido de uma ultrapassagem da
fragmentação das resistências e de uma convergências
das lutas para a construção de uma frente unida dos povos.
Face às disfunções do actual sisema mundial capitalista,
pensar em alternativas com conteúdo social afirmado tornou-se hoje uma
exigência para o bem estar dos povos. Uma das soluções
passa pela ascensão dos intercâmbios entre países do Sul
que sejam fundamentados sobre regionalizações alternativas, como
é exactamente o caso da ALBA e de seus programas satélites
(PetroSur na energia, Sucre para a moeda, TeleSur para a
informação...). Para isso, as condições são
numerosas, mas também difíceis de reunir: seriam
necessários, em primeiro lugar, avanços populares nos
países em causa e uma passagem das lutas da defensiva para a ofensiva;
em seguida, o acesso ao poder de um governo progressista e seu controle
efectivo do Estado; finalmente, a definição de uma
estratégia de união dos países do Sul.
Quais seriam, neste contexto, as possibilidade de êxito de uma
versão asiática ou africana da ALBA? No momento actual, parecem
muito fracas, mas não são inexistentes. Os obstáculos a
ultrapassar são extremamente importantes na Ásia e talvez ainda
mais em África. Estes dois continentes permanecem atravessados por
contradições profundas e oposições múltiplas
(na Ásia, por exemplo, entre Japão e China, Coreia do Sul e
Coreia do Norte...). Estes conflitos locais são igualmente acentuados
pela ingerência dos Estados Unidos sem esquecer seu controle
militar directo sobre vários países, como a Coreia do Sul, nem as
guerras que prosseguem no Médio Oriente e na Ásia central. De
facto, a maior parte dos esforços de institucionalização
regional (na Ásia, por exemplo, em torno da ASEAN ou através de
diversas propostas de integração monetária) têm
permanecido bastante limitados. Tendo em conta seu peso demográfico,
econonómico e diplomático, a China é provavelmente o
único contrapeso potencial ao hegemonismo estado-unidense, mas permanece
sempre imbricada no sistema de poder do Norte, especialmente dos Estados
Unidos. Entretanto, não é totalmente inimaginável que uma
inclinação à esquerda de um dos governos de direita num
país da região (exemplo: uma vitória eleitoral das
forças progressistas na Coreia do Sul) possa abrir a oportunidade de
lançar uma (tentativa de) regionalização alternativa
asiática, no rastro da ALBA.
O futuro dirá se um tal cenário chegará a realizar-se
em torno de uma Coreia do Sul orientada à esquerda e aberta
à ideia de uma reunificação com a Coreia do Norte e de uma
reaproximação com a China e o Vietname, ou mesmo em
associação com outros países com governos menos
progressistas, mas que no passado souberam manifestar uma vontade de autonomia
relativa face aos diktats do FMI (como a Malásia durante a crise de
1998) ou não chegará... A menos que a
agregação das forças na Ásia não se produz
em torno do grupo de Shangai, na base de uma aliança estratégica
entre a China e a Rússia, ampliada a vários parceiros chave da
região. Este tipo de regionalizações alternativas mudaria
de natureza as relações entre os países do Sul.
Dir-se-á: isto é utópico! Sem dúvida, à
vista do estado das relações de força actuais. Mas
lembremo-nos de que apenas alguns meses antes do seu lançamento, a
realidade da ALBA era simplesmente inconcebível para muitos observadores
e isto, mesmo na América Latina.
Intercâmbios "equitativos" entre países do Sul?
O fortalecimento dos intercâmbios Sul-Sul é um dos eixos
fundamentais deste debate. E é a China que ocupa, de muito longe, a
parte mais determinante neste fenómeno, em particular no que se refere
às relações entre a Ásia e a África. Em 2010
ela assina cerca de 100 mil milhões de dólares de contratos
comerciais com países africanos, ou seja, dez vezes mais do que uma
década antes. Se bem que dificilmente calculável, o stock total
dos investimentos directos chineses na África poderia hoje exceder 120
mil milhões de dólares. O continente africano representa
doravante um terço dos aprovisionamento da China em hidrocarbonetos
(Angola destronou a Arábia Saudita como primeiro fornecedor). Os bancos
chineses entram em força no capital dos estabelecimentos
bancários africaos, inclusive na África do Sul. Mas é de
facto o conjunto dos fluxos de intercâmbios comerciais entre a
África e a Ásia que aumentou fortemente. Para além das
diferenças locais e das variações anuais, o facto marcante
é que as economias da Ásia em geral, e da China em particular,
tornaram-se para a África parceiros comerciais incontornáveis.
Uma tal penetração levanta críticas longe de serem
todas fundamentadas tanto no Norte como em África. Nos
países industrializados do Norte, as condenações mais
virulentas vêm de representantes das elites económicas, que gritam
"perigo amarelo". Entretanto é forçoso constatar que um
dos efeitos desta subida de potência da Ásia foi,
imperceptivelmente, constranger a União Europeia a moderar o tom
altaneiro a que desde há muito se habituara a dirigir-se aos africanos.
Em África, são muitas vezes comerciantes ou intermediários
influentes que fazem campanha contra os asiáticos; mas parece que grande
parte das elites políticas, assim como grande das camadas populares,
encontram muitas vantagens nisso.
Apesar de problemas múltiplos e reais, que será preciso saber
ultrapassar pela utilização bem pensada de ferramentos de
política económica à disposição dos Estados,
estas novas relações constituem no conjunto uma oportunidade a
aproveitar pela África. É mesmo provável que a
recuperação da taxa de crescimento económico dos
países africanos entre 2000 e 2007 (ou seja até à
explosão da crise sistémica global de 2008) seja positivamente
correlacionado com o dinamismo observado nos seus intercâmbios com a
Ásia neste período. Pois os efeitos positivos destes
intercâmbios passam por multiplos canais: reforço do
comércio em volume e em valor (uma vez que a procura asiática faz
subir os preços das mercadorias exportadas); construção de
infraestruturas (uma parte dos intercâmbios comportando uma rubrica
recursos naturais contra trabalhos públicos); alívio de
dívidas (os créditos chineses sendo frequentemente concedidos a
taxas de juro baixas)...
As consequências portanto são claramente benéficas para a
África, que assim pode dispor de estradas asfaltadas (ligado o Cairo a
Captown), pontes, caminhos de ferro, equipamentos portuários... A
"colocação em concorrência" dos países
clientes contribui também para orientar em alta os preços dos
produtos exportados nos mercados mundiais, ao passo que se torna
possível o emprego de recursos raros para satisfazer as necessidades de
consumo locais. Estes intercâmbios são igualmente interessantes,
certamente, para a China. Esta acede a recursos estratégicos para
sustentar seu desenvolvimento acelerado, a começar pelo petróleo
(Angola, Nigéria, Argélia), minerais e metais raros (Congo
Kinshasa)... Ela encontra também a oportunidade de empregar uma parte da
sua mão-de-obra excedentária e pode conservar suas reservas de
divisas para afectá-los a outras utilizações
infelizmente ainda frequentemente para a compra de títulos da
dívida estado-unidense. No total, um afrouxamento dos laços de
dependência dos países do Sul em relação ao Norte
pode ter sobre eles efeitos dinamizadores, multiformes. Diante de tudo isto,
serão "equitativos" estes intercâmbios entre a
Ásia e a África? Se, do ponto de vista africano, os
benefícios destas relações parecem predominar sobre os
seus inconvenientes, não é seguro que todos os empreendedores ou
comerciantes chineses se tenham desembaraçado de todos os traços
desagradáveis do comportamento de dominação dos
país do Norte para com a África...
A economia dominante, nas suas versões académicas (teoria das
vantagens comparativas) ou vulgares (apologéticas do livre
comércio), considera o intercâmbio como igual e verificando-se
entre parceiros iguais, que sempre tirariam proveito de um comércio
liberalizado visto como "jogo de soma positiva". Os modelos
económicos neoclássicos, que servem de fundamento às
recomendações políticas neoliberais das
organizações internacionais e da maior parte dos governos
actuais, desembocam quase todos em conclusões favoráveis ao livre
comércio. Ora, no sistema mundial capitalista realmente existente, o
funcionamento da esfera da circulação mercantil demonstrou sem
ambiguidade, desde há mais de cinco séculos, que intervêm
de modo decisivo relações de forças e de
dominação interelacionados (entre países, classes...). O
que os "heterodoxos" traduziram pelas teorias do intercâmbio
desigual, da dependência, da deterioração dos termos de
troca... Na África ou alhures, numerosos exemplos ilustram
relações económicas internacionais a operarem em desfavor
do Sul. Falar de comércio "equitativo" tornou-se moda
é um nicho com lucros sumarentos. Tratar-se-ia de introduzir a
"ética" nas relações comerciais, o que equivale
a reconhecer que o comércio tal qual ele é no sistema mundial
capitalisa não é "equitativo", na verdade que o
intercâmbio é desigual. Então, para alguns seria preciso
"moralisar" o capitalismo... o que subentende que este que se
apresenta como o melhor sistema, portanto sem alternativa, é de facto...
imoral!
Uma das soluções para os desequilíbrios das
relações Norte-Sul poderia passar pela expansão dos
intercâmbios Sul-Sul. As margens de progressão são enormes
e isto a todos os níveis: comercial, financeiro, energético,
tecnológico, científico... No entanto, isto só
constituiria um factor de reequilíbrio na condição de que
este comércio Sul-Sul fosse expurgado dos diversos "males" que
caracterizam as relações Norte-Sul tais como operam
tradicionalmente. Seria de facto aceitável que uma economia do Sul se
comportasse em relação a um outro país do Sul como
potência dominante ("sub-imperialista", poder-se-ia dizer)? Ou
que ela viesse a exercer sobre o seu parceiro pressões no sentido de um
despojamento dos seus recursos naturais (da terra) e de uma
destruição do ambiente? O incremento dos intercâmbios
comerciais pode certamente dopar a taxa de crescimento económico de um
país, mas não significa em si mesmo o desencadeamento de um
processo de desenvolvimento sócio-económico, algo mais complexo.
Para a África de hoje, nada poderia substituir o reforço das suas
formações sociais agrária e o apoio estatal local das
produções agrícolas alimentares ainda que
pareça evidente que as importações de bens
asiáticos permitem aos povos africanos viver melhor consumindo mais e
ultrapassar crises alimentares. Uma vez cumprida a revolução
agrícola se necessário por verdadeiras reformas
agrárias , o impulso a seguir poderia ser dado a uma
industrialização autocentrada e, quando possível, a certos
sectores dos serviços com forte valor acrescentado.
PARA UMA OUTRA POLÍTICA EXTERNA DO NORTE
As condições hoje parecem reunidas para que uma das
consequências maiores da crise sistémica actual seja o agravamento
da confrontação entre o Norte o Sul apesar das
cooptações do G20. O poder institucionalizado dos
oligopólios do centro entra cada vez mais frontalmente em conflito com
os interesses dos novos actores que aumentam o seu poder nas periferias do
sistema mundial. No seio deste último, as contradições
multiplicam-se e complexificam-se, inclusive entre classes dirigentes. Neste
contexto, projectos de cooperação Sul-Sul têm progredido,
especialmente entre países emergentes. A reaproximação
estratégica dos "BRICS" permite pensar que este conjunto
chegaria, num futuro bastante próximo, a contrabalançar a
dominação do "G5". A partir de agora, a soma dos PIB
medidos em paridades de poder de compra da China, da Índia, da
Rússia, do Brasil e da África do Sul aproxima-se, em
estática, do nível de riquezas produzidas pelos Estados Unidos,
contribuindo, em dinâmica, para dois terços do crescimento mundial
actual. As últimos Cimeiras dos BRICS (representando no total 45% da
população do planeta) marcaram a sua vontade de ultrapassar seus
contenciosos e coordenar suas posições a fim de apelar a uma
reforma da ordem mundial. Uma manifestação destas
reaproximação foi o anúncio da exploração
das condições de factibilidade e de viabilidade de uma nova
instituição multilateral de crédito gerido por eles
próprios. Este banco visa financiar projectos de desenvolvimento
sustentável e infraestruturas nos países do Sul e do Leste (e
talvez também do Norte), a busca de respostas coordenadas face à
crise e a autonomização das decisões soberanas dos
governos dos BRICS em relação às
"soluções" das organizações
internacionais. Um dos objectivos é atenuar a importância do
dólar enquanto moeda internacional de pagamento e de reserva e um dos
meios de atingir esta finalidade é a promoção dos
intercâmbios comerciais bilaterais denominados em moedas locais. Mais um
passo foi dado na direcção da construção de um
mundo multipolar. Mesmo se este não foi dado com a
intenção do sentido do progresso social e de uma democracia
substancial, esta marcha para a multipolaridade poderia impulsionar um sistema
mundial mais equilibrado e mais justo.
Face a estas evoluções fundamentais que ocorrem no Sul e no
Leste, várias questões apresentam-se aos progressistas e
trabalhadores do Norte. Podem eles tolerar que estes países do Norte
continuem a agir muito frequentemente ainda como potências imperialisas,
mesmo neocoloniais, quando grandes componentes das suas elites dominantes, que
outrora em nome dos seus povos cometeram crimes coloniais e escravocratas,
submetem-se ao poder da alta finança e lançam seus
exércitos fora das suas fronteiras e em muitos lugares do mundo em
guerras por assim dizer permanentes e na verdade sob comando militar
estado-unidense contra países do Sul? Aceitar a
"fatalidade" de uma confrontação com o Sul e a
ascensão das diversas variantes de extremas direitas políticas,
comunitaristas, religiosas todas igualmente pró
sistémicas, ou seja, pró capitalistas que a acompanha?
Aceitar que muitos líderes de suas organizações
partidárias e sindicais abandonem toda solidariedade internacionalista,
ao mesmo tempo que toda posição de clase em defesa dos interesses
das camadas populares? Estas dificuldades que enfrentam as forças
progressistas do Norte são também complicadas pelos problemas,
não menos numerosos, que vêm do Sul, dentre os quais a
opção, para a maior parte das elites dirigentes destes
países, da via capitalista como "estratégia de
desenvolvimento". Para nós, é uma ilusão acreditar
que o capitalismo seja uma "solução" para o Sul ou o
Leste.
Quais são as alternativas? Seria falso pensar que existem receitas
miraculosas; mas falso igualmente acreditar que não há
alternativas. Há, a discutir democraticamente. E para
construí-las é preciso reabrir o debate sobre as
opções possíveis, libertando-se da propaganda
mediática dominante. Mas a urgência é travar a
regulação do sistema capitalista mundial pela guerra, sob a
hegemonia estado-unidense e a agressão contra o Sul. Para isso, é
preciso sair da componente militar da NATO. Isso exige não opor mais os
trabalhadores do Norte aos povos do Sul e sermos capazes de passar da
construção de uma consciência colectiva àquela de
actores colectivas, plurais, multipolares, a fim de por em causa a
extraordinária potência conquistas pela finança. Esta
solidariedade não pode passar senão pela superação
(dépassement)
dos valores e das leis do capitalismo. Desligar a máquina infernal
destas guerras accionadas pela finança necessita impor aos
oligopólios financeiros a obrigação de um controle
público e democrático. É preciso nacionalizá-los e,
com eles, os sectores estratégicos da economia para colocá-los ao
serviço dos povos e reabrir margens de manobra para políticas de
progreso social verdadeiro.
Do mesmo autor em resistir.info:
O 'renascimento' neoliberal da teoria do desenvolvimento
Cuba e o projecto comunista
A economia estado-unidense hoje: Entre a crise sistémica e a guerra permanente
A propósito dos motins nos subúrbios franceses
Crise financeira ou... de superprodução?
Reflexões sobre a crise
Lições do Sul para uma Europa em crise?
Depois do não francês
As ideias feitas e a verdade escondida sobre Cuba
Uma visão alternativa da «dissidência» cubana
Os Fórums de Mumbai 2004: Que lições tirar?
Cuba: Uma resistência socialista na América Latina
[*]
Economista, francês, investigador do CNRS, UMR 8174 Centre
d'Économie de la Sorbonne.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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