Reflexões sobre a situação da França

por Felisniger

Cartaz de uma manifestante idosa. Ainda não chegou o momento do epitáfio, mas o movimento de protesto na França está a esmorecer.

"Somente" 2 milhões de pessoas foram às ruas na terça feira, contra 3,5 milhões há duas semanas.

Mas os patrões ainda estão em estado de choque. Eles revelaram na quarta feira que nas últimas duas semanas 50% da indústria francesa esteve paralisada devido à escassez de matéria-prima e combustível. Hoje, terça, 25% das fábricas ainda estão "sofrendo grandes atrasos na produção, e incapazes de manter os prazos de entrega, causando ainda mais perdas devido às penalidades relacionadas a quebras contratuais". Como muito sindicalistas comentaram: "quando eles começam a falar sobre perdas, significa que estamos quase ganhando".

E as greves ainda seguem na maioria das refinarias francesas. A despeito da propaganda governamental, que anunciou que cinco em cada 12 refinarias já estão funcionando, parece que isso é apenas outra mentira. Sete refinarias estão em greve até sábado, duas refinarias estão fechadas e com piquetes, três refinarias votaram pela volta ao trabalho (depois de a administração oferecer-lhes aumento de salários e pagamento de todos os dias de greve), mas não são capazes de processar nada porque os óleodutos dos terminais petrolíferos dos portos de Marselha e Le Havre ainda estão bloqueados por estivadores em greve.

Mas o clima está inegavelmente pessimista, especialmente depois da traição da CFDT e de certos segmentos da CGT. A CFDT aceitou reunir-se com os patrões para discutir "desemprego e salários". Uma indicação clara de que chegou a hora da rendição (mais uma…).

Como disse, ainda não chegou a hora de uma autópsia no trabalho vivo. Entretanto, análises dos eventos de 10 de outubro estão começando a circular.

Algumas características da "revolta das pensões" foram assinaladas por muitos comentadores à esquerda:

  • Os grevistas eram da "velha indústria pesada": ferroviários, trabalhadores do aço, trabalhadores automotivos, em transporte, energia ou "trabalhadores intelectuais: "professores, trabalhadores na saúde, empregados de bancos, estudantes. Isto é, trabalhadores empregados em empresas com mais de 50 empregados. Pessoas trabalhando em pequenas empresas (abaixo de 50 empregados) não puderam se organizar. Também não o puderam trabalhadores de shoppings, supermercados, telemarketing, serviços, etc. (comércio, serviços e indústrias de tecnologia da informação). Onde quer que a precarização da força de trabalhão fosse dominante, as pessoas NÃO PODIAM PERMITIR-SE (nas suas próprias palavras) fazer greve, porque temiam pela sua sobrevivência.

    GREVE POR PROCURAÇÃO

  • Esta situação levou ao que "Mouvement Communiste", na sua análise das greves em França (publicado em francês e inglês em libcom.org ) chamou de "esquizofrenia da greve por procuração". Ao invés de fazerem greve ela própria, dois terços da classe trabalhadora aplaudiu enquanto uma minoria fazia greve. "Greve por procuração é um grande perigo para a classe trabalhadora". Há muitos pontos no artigo do "Movimento Comunista" que eu e muitos trabalhadores nos piquetes na rua consideramos discutíveis. São demasiado pessimistas e tendem a impor sua própria marca de Marxismo Autônomo sobre uma situação complexa.

  • Sempre esteve claro que a "reforma das pensões" era apenas uma das razões pelas quais as pessoas foram à greve. Na verdade, muitos trabalhadores falavam de sentimentos de ira e frustração, sentimentos de impotência em face de um Leviatã, que qualquer fagulha poderia incendiar.

  • A burocracia sindical e os partidos de esquerda (especialmente o NPA e o Partido de Esquerda) desempenharam inicialmente um papel importante na organização da greve geral. Entretanto, o movimento depressa se tornou verdadeiramente interssetorial e viu trabalhadores de várias indústrias se unirem no bloqueio coletivo da economia. Em cada cidade e subúrbio, os trabalhadores começaram a bloquear depósitos de combustível e as principais estradas que conduziam a parques industriais. Isso permanecerá como um dos destaques de 10/10. Desde o início, a questão era quebrar a produção e o consumo e atingir duramente a burguesia, e todos os que participaram estavam conscientes da necessidade de fazer o país parar e felizes por interromper a produção e fazer declinarem os lucros do capitalismo (nem que fosse por 17 dias).

  • em muitas cidades (Perpignan, Rennes, alguns bairros de Paris ), mas não na minha, Reuniões Gerais de todos os grevistas eram convocadas diariamente, organizaram-se bloqueios rodoviários e muitos outros protestos. Esses protestos incluíam (dependendo da região): passagem livre nas portagens das rodovias durante as férias do meio do ano; coletar lixo com a ajuda dos coletores em greve e despejá-lo na frente das casas de importantes líderes empresariais; empregados nos refeitórios universitários dando refeições gratuitas para os estudantes; fechamento de repartições coletores de impostos (o que surpreendentemente acabou por ser bem impopular, com pessoas com impostos atrasados próximas ao pânico quando ouviram que não poderiam entrar na repartição), etc.

  • uma quantidade bastante considerável de dinheiro foi coletada por todo o país para apoiar os trabalhadores grevistas das refinarias. Novamente "greve por procuração", como alguns diriam.

  • entretanto, "as Reuniões Gerais de todos os grevistas" não incluíram alguns setores da indústria pesada que eram fortemente sindicalizados e onde a burocracia sindical desprezou essas iniciativas preferindo deixar "os sindicatos fazerem seu trabalho de coordenar os protestos". Em muitas cidades, incluindo a minha própria "fortaleza vermelha da indústria pesada), os sindicatos simplesmente não ligaram para a idéia dos "Conselhos de Trabalhadores". Não obstante, grevistas de diferentes indústrias ficaram rapidamente amigos entre si, trocando emails, números de celular e páginas no Facebook. Mesmo o "Mouvement Communiste" admite que "esses contatos intra-setoriais serão úteis no futuro".

  • A burocracia sindical previsivelmente "traiu" o movimento. O engraçado é que todos os trabalhadores com quem conversei estavam esperando isso mesmo. E não ficaram surpresos quando a CFDT ofereceu uma trégua. "Eles sempre fazem isso. Têm feito isso durante quarenta anos. Incitam as pessoas a fazerem greve, levantam bandeiras vermelhas e então negociam com os patrões. Mas quem se importa com burocratas sindicais? A questão não são eles, não é mesmo? Pelo menos estamos lutando, e é isso que conta. Pode não ser uma revolução, mas pode ser a única possibilidade que teremos em muito tempo para mostrar-lhes que pensamos. Então não podemos demasiado ser exigentes, entende o que digo?" era o sentimento que via seguidamente entre os trabalhadores automotivos, caminhonistas e ferroviários.

Assim, não acho que trabalhadores e estudantes tenham sido realmente "enganados" pelas burocracias sindicais, porque eles sabiam exatamente o que esperar desde o início. Mesmo trabalhadores jovens de 20 anos.

O fato é que, apesar de toda a alegria, sentiu-se que há um peso enorme sobre a classe trabalhadora: as pessoas precisam do cheque de pagamento, e a maior parte da classe trabalhadora está irada mas não acredita que a mudança seja possível.

Um trabalhador a caminho de casa parou para conversar conosco num bloqueio rodoviário: Ele nos disse: "O supervisor veio até a loja. Viu que estávamos meio ociosos porque nenhuma entrega fora feita durante três dias. Ele me disse: 'Vá para a rua com um dos caminhões e tente trazer alguns materiais dos armazéns'. Eu lhe disse: 'Desculpe-me senhor, mas não sou um fura-greve. Se me mandar sair, vou parar o caminhão na estrada e me juntar aos grevistas, portanto é melhor o senhor me dar alguma outra coisa para fazer'. Acho que é uma vergonha. É uma vergonha não termos entrado em greve na minha fábrica, é uma vergonha que os petroleiros estejam fazendo greve por todos nós, enquanto todos nós deveríamos estar nas manifestações. Você sabe… Por isso eu sei que este movimento não terá êxito. Porque a maior parte de nós tem demasiado medo para ir à greve…"

E. sabe que não achei esta declaração pessimista. A consciência da classe trabalhadora na França recebeu um enorme impulso a partir dos eventos começados em 11 de outubro. Todos os jornalistas arrogantes do Liberation, TF1, Le Monde, etc foram obrigados a reconhecer que algo havia mudado na França, mesmo que na superfície nada houvesse mudado. Os eventos não ocorreram no Senado, ocorreram nas ruas.

E agora? Naturalmente, os sindicatos votaram por "continuar os protestos", mas ao mesmo tempo estavam falando sobre se engajar em conversas com os líderes empresariais sobre "um leque amplo de assuntos que incluem desemprego, juventude e salário".

Novas (ou melhor, velhas) formas de protesto apareceram: bloqueio da economia, golpe na carteira da burguesia, solidariedade interssetorial.

Desta vez, os trabalhadores não bloquearam apenas seus locais de trabalho: saíram às ruas e coletivamente ajudaram a bloquear todo o sistema de produção e consumo. O governo apresenta isso como um sinal de fraqueza da classe trabalhadora ("sindicatos não são mais capazes de convocar uma greve geral real, eles apenas convocam os elementos mais radicais dos vários setores para bloquear a economia. É um caso em que o aumento da radicalismo compensa a queda no número de trabalhadores sindicalizados nos últimos vinte anos").

Mas isso também pode ser visto como sinal de força, especialmente pelo fato de que, durante 17 dias, 71% da classe trabalhadora aprovou o bloqueio da economia, segundo pesquisas.

28/Outubro/2010

O original encontra-se em http://felisniger.blogspot.com/2010/10/reflections-on-situation-in-france.html
Tradução de RMP.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
11/Nov/10