Mélenchon: o Euro e a insensatez
(Atenção: Esta crítica a Mélechon também é
válida para o Bloco de Esquerda português)
por Jacques Sapir
Jean-Luc Mélenchon
, no dia seguinte ao Congresso do
Partido da Esquerda
e depois da polémica maldosa lançada contra si na sequência
das suas declarações sobre o ministro da Economia, Pierre
Moscovici
[NT 1]
, concedeu uma entrevista à
Direct Matin
. Estabelece aí um certo número de precisões quanto a
alguns assuntos e, em particular, toma posição sobre o Euro no
rescaldo do acordo a que se chegou acerca de Chipre. É forçoso
constatar que as suas declarações, para além do efeito de
escaparate, não vão no sentido da sensatez e podem apenas
contribuir para aumentar a confusão reinante numa parte da esquerda
quanto à moeda única.´
Uma atitude mentirosa
Retomemos portanto os seus próprios termos:
Aquando do nosso congresso, o Euro. A dúvida está aí. Mas
se renunciamos ao Euro, fazemos o jogo do plano de Merkel, que quer expulsar a
Europa do Sul depois de a ter destruído. É necessária
firmeza nas nossas decisões, relembrando que na Europa nenhuma
decisão pode ser tomada sem a França. Não devemos
apoucar-nos, O facto é que somos a segunda economia da Europa. Dispomos
de meios de ação se tivermos coragem política.
Passemos rapidamente por cima da bravata espalhafatosa com que a
declaração conclui. A alusão a um plano da Alemanha e da
Sra. Merkel, visando uma "expulsão" dos países da
Europa do Sul da Eurolândia, constitui um completo contra-senso quanto
àquela que é a posição realmente adotada
além-Reno. A Alemanha, como se sabe, é de longe o país que
retira mais vantagens da existência da zona Euro. Esta última
explica cerca de 3% do PIB anual deste país. Como é que um
país que tira tanto proveito da existência de uma zona
monetária poderia pretender expulsar aos demais desta? Seria
necessário, nesse caso, concluir que os dirigentes alemães
são masoquistas. A realidade é bem mais simples. A Alemanha
está enredada na seguinte contradição: beneficia
largamente da zona Euro, a qual impede os outros países de ajustarem as
respectivas produtividades em relação à sua, mas ao mesmo
tempo recusa-se a fazer os sacrifícios que seriam impostos por um
verdadeiro federalismo orçamental ao nível da zona Euro. O custo
deste federalismo já foi calculado
[1]
. Para assegurar a simples sobrevivência dos quatro países da
Europa do Sul, e permitir às suas economias colocarem-se ao nível
da Alemanha, seria necessário gastar 257,7 milhares de milhões de
euros por ano. A Alemanha suportaria, pelo seu lado, muito provavelmente 90 por
cento do financiamento desta soma, ou seja, entre 220 e 230 milhares de
milhões de Euros por ano, isto é, qualquer coisa entre 8 e 9 por
cento do seu PIB. Teria de manter essa contribuição durante um
período de pelo menos 8 a 10 anos. Outras estimativas apontam mesmo para
montantes mais elevados
[2]
. Compreende-se, deste modo, a recusa intransigente dos dirigentes
alemães quanto a aceitar o que quer que fosse que pudesse comprometer o
seu país na via duma "união de transferências".
Esta recusa é, de resto, plenamente justificada. Como consequência
da sua estrutura demográfica, a Alemanha não pode permitir-se uma
tal punção da sua riqueza. Estes factos são conhecidos,
trate-se do que a Alemanha retira da zona Euro ou do que ela deveria contribuir
para a fazer funcionar, e Jean-Luc Mélenchon não os pode ignorar.
A posição da Alemanha é, portanto, a de procurar conservar
as vantagens que recolhe da zona Euro, evitando todavia pagar o preço
correspondente. Na economia e na teoria dos jogos chama-se a isto uma
estratégia de "passageiro clandestino"
[NT 2]
. Por esse motivo a Alemanha adoptou esta política de fazer cada
país em crise pagar pelo seu próprio plano de resgate, facto de
que tivemos mais um exemplo com o caso cipriota, e esta política
é acompanhada/justificada através de comentários cada vez
mais descorteses relativamente aos habitantes da Europa do Sul. Pretender
assim, publicamente, que haveria um "plano secreto" da Alemanha
visando a expulsão dos países da Europa do Sul não
é apenas uma contra-verdade factual. Constitui uma mentira
política para a qual é necessário encontrar as
raízes.
As raízes da mentira
Porquê pretender que há um "plano da Sra. Merkel" na
realidade inexistente (pelo menos sob essa forma e com esse conteúdo)?
No fundamental, para cristalizar uma opinião pública francesa
hoje em dia predominantemente anti-alemã (e não sem boas
razões), apresentando uma posição que desemboca na
aceitação das condições da Alemanha como se ela
constituisse uma pretensa resistência a esta última.
Através da referência a um plano imaginário, Jean-Luc
Mélenchon pode assim enfeitar-se com uma postura vantajosa, a qual
mascara uma posição largamente incoerente. Propõe toda uma
série de medidas que são estritamente incompatíveis com a
própria existência duma moeda única. Isso também
é muito claro no livro de Jacques Généreux
Nous on peut
. É evidente que, se medidas de requisição do Banco da
França fossem postas em prática, a França seria de
imediato confrontada com um "bloqueio" monetário do Banco
Central Europeu. Em duas ou três semanas, a lógica da crise assim
criada resultaria em fazer explodir a zona Euro. É de resto esse o nosso
interesse
[3]
, e também o de países como a Itália, a Espanha ou
Portugal.
Quadro 1
|
A
|
B
|
C
|
D
|
E
|
|
Crescimento por efeitos directos (corrigido)
|
Efeito multiplicador sobre o crescimento por diminuição de
impostos ou crescimento das despesas (e=1,4)
|
Taxa de crescimento induzida pelo crescimento da FBCF (efeito-procura)
|
Ganhos totais em efeitos indirectos
(B+C)
|
Taxa de crescimento final
(A+D)
|
Redução do desemprego (em percentagem da população
activa)
|
T
|
2,60%
|
1,25%
|
0,75%
|
2,00%
|
4,60%
|
-1,50%
|
T1
|
3,82%
|
1,16%
|
1,41%
|
2,57%
|
6,40%
|
-2,00%
|
T2
|
2,82%
|
1,11%
|
1,82%
|
2,93%
|
5,75%
|
-1,75%
|
T3
|
2,33%
|
0,79%
|
1,44%
|
2,23%
|
4,56%
|
-1,50%
|
T4
|
0,51%
|
0,51%
|
1,14%
|
1,65%
|
2,16%
|
0,50%
|
T5
|
0,14%
|
0,00%
|
0,37%
|
0,37%
|
0,52%
|
0,00%
|
Fonte: Jacques Sapir, "L'impact d'une sortie de l'Euro sur
l'économie
française", artigo publicado no sítio web Russeurope
a 05/03/2013. Avaliação da redução do desemprego a
partir dos dados da DARES e do Ministério da Reorganização
Produtiva
Seria assim muito mais interessante dizer clara e directamente que, sim, a zona
Euro nos estrangula (bem como aos outros países da Europa do Sul
[4]
), que, sim, uma desvalorização seria um meio bem menos custoso
de restabelecer a nossa competitividade, e que, sim, temos interesse em que a
zona Euro, na sua forma actual, desapareça.
Gráfico 1
Poder-se-ia acrescentar que, na luta de classes que hoje em dia opõe as
finanças (no sentido mais geral) aos produtores, o Euro constitui um
nó de bloqueio que garante a perenidade das políticas de
financiarização da economia. Provocar o rebentamento do Euro
é assim colocar em causa este nó, podendo-se então pensar
de novo uma economia que já não esteja sob a alçada das
finanças. Mas, e é um grande "mas", seria
necessário para isso dizer temporariamente adeus ao sonho federalista. E
é precisamente isso que bloqueia Jean-Luc Mélenchon. Nesse ponto,
ele tem tanto medo de que o tomemos por um outro diferente de si, que se enreda
cada vez mais nas suas próprias contradições, declarando
num dia que entre a soberania popular e a soberania do Euro escolhe a primeira,
e dando no dia seguinte esta entrevista realmente calamitosa.
Um erro estratégico e táctico
A posição de Jean-Luc Mélenchon, e infelizmente
também, através dele, a do próprio Partido de Esquerda
Europeu (PEE), constitui assim um duplo erro, simultaneamente
estratégico e táctico.
É um erro estratégico a dois níveis. Por um lado, porque
isto desarma os franceses na sua luta contra a austeridade e a política
de desvalorização interna, actualmente prosseguida pelo governo
com o apoio do MEDEF
[NT 3]
. De cada vez que se alvitra que esta política é um desastre
anunciado, respondem-nos que ela é necessária tendo em conta os
nossos "compromissos europeus", isto é, o Euro. Por outro
lado, porque este discurso de Jean-Luc Mélenchon não permite ver
que o maior perigo, hoje em dia na Europa, provém justamente da
existência do Euro, o qual empurra os países para a
confrontação recíproca, para já indirectamente
através dos esforços-extra de cada um em políticas de
desvalorização interna, amanhã mais directamente,
torturando-se uns aos outros e torturando a Europa. É necessário
dizer aqui que aquilo que reprovamos à Alemanha não é o
facto de seguir uma política patrimonial, a qual é
necessária do ponto de vista da sua demografia, mas o facto de a impor aos outros, e
em particular à França, através do Euro. Na verdade, sob a
máscara de um "internacionalismo" de fachada, a
política de Jean-Luc Mélenchon contribui para fazer a cama
às piores escaladas nacionalistas.
Depois, esta posição é também um erro
táctico. Torna inaudível a Frente de Esquerda e, no seu seio, o
Partido de Esquerda. Condena-o a vegetar em termos eleitorais. Induz
então um esgaravatar patético, seja em termos verbais (como a
propósito do caso Moscovici, mesmo qye no fundo as propostas fossem
inteiramente justificados), seja em termos políticos, o que constitui um
impasse. Existe à esquerda um debate que já se desencadeou sobre
o Euro, o qual também diz respeito ao Partido Socialista, debate esse no
qual as dúvidas cada vez mais emergem em certos sectores. Isto
também é verdade para a esquerda "fora de partidos",
como no caso do M'DEP [
Mouvement Politique d'Éducation Populaire
], e bem assim para a Frente de Esquerda. De resto, tal debate ultrapassa
largamente aquilo a que se chama a esquerda. Se o Partido de Esquerda, e
Jean-Luc Mélenchon, tivessem adoptado uma atitude coerente sobre a
questão do Euro, sugerindo soluções que não fossem
puramente propagandísticas e propondo formas de manutenção
duma coordenação mínima entre as nações uma
vez dissolvida a zona Euro, teriam ganho uma credibilidade importante que lhes
permitiria ser um dos pólos de recomposição da vida
política francesa. Não o tendo feito, condenaram-se a não
ser mais do que meros espectadores desta crise, ao invés de serem
actores. É necessário quanto a isso meditar nos resultados da
eleição legislativa parcial do Oise, a qual viu a candidata da
Frente Nacional atingir um resultado superior a 48 por cento. Estima-se que
mais de 40 por cento dos votos dos eleitores do Partido Socialista se
deslocaram para ela. É uma lição sobre a qual
convém meditar.
Notas
[1]
Jacques Sapir, "
Le coût du fédéralisme dans la zone Euro
", artigo publicado no sítio Russeurope a 10/11/2012, URL:
http://russeurope.hypotheses.org/453
[2]
Patrick Artus, "
La solidarité avec les autres pays de la zone euro est-elle incompatible
avec la stratégie fondamentale de l'Allemagne : rester
compétitive au niveau mondial ? La réponse est oui
", NATIXIS,
Flash-Économie
, n°508, 17 de Julho 2012.
[3]
Jacques Sapir, "
L'impact d'une sortie de l'Euro sur l'économie française
", artigo publicado no sítio Russeurope a 05/03/2013, URL:
http://russeurope.hypotheses.org/987
[4]
Podemos reportar-nos aos gráficos de Jacques Sapir,
Quelques commentaires sur le rapport du FMI "World Economic Report",
octobre 2012
, nota publicada no sítio RussEurope, 9 de Outubro de 2012,
http://russeurope.hypotheses.org/253
NT
[1] Mélenchon exprimiu um certo número de posições
retoricamente "anti finanças", as quais foram vorazmente
processadas/deturpadas/transmutadas pelos media em declarações
pretensamente "antijudaicas" ou mesmo "anti-semitas":.
[2[ Passageiro clandestino:
free rider
ou "pendura":
[3] MEDEF: O equivalente em Portugal à CIP/CAP/CCP. De seu nome completo "Mouvement des Entreprises de France", que em 1998 sucedeu ao mais antigo CNPF, "Conseil National du Patronat Français". Lá como cá, a cosmética e a "correcção política" impuseram obviamente a transmutação do mais franco, mas infelizmente arrogante, "patronato", em suave e ligeiro "empresarialismo"...
O original encontra-se em
http://russeurope.hypotheses.org/1102
Tradução de João Carlos Graça.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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