por Ricardo Alarcón de Quesada
Uma nova moda parece ganhar terreno no jornalismo estadunidense: descobrir que
algumas das suas principais cronicas eram a obra espúria de farsantes
que, em violação de toda a ética, dedicavam-se a mentir,
falsificar e plagiar. O caso de Jayson Blair, que no ano passado custou o
posto de trabalho aos principais editores de
The New York Times
, continua neste momento a alvoroçar pois ele já é uma
celebridade e os media convidam-no a promover o livro que narra as suas
aventuras.
Chegou a vez do
USA Today
. A 10 de Março, em dois longos artigos, informou os seus leitores, com
profusão de pormenores, que o seu jornalista-estrela Jack Kelley
o mais destacado, o que mais méritos havia acumulado numa carreira
brilhante ao longo de 22 anos, que fora proposto cinco vezes ao Pullitzer
é, na realidade, um embusteiro de categoria olímpica. Para
descobri-lo o
USA Today
efectuou uma ampla investigação que abrangeu uma longa
série de reportagens grosseiramente fabricadas.
Vamos nos ocupar apenas com um caso que o próprio jornal considera o
pior e refere-se a Cuba. Resumindo: em Fevereiro de 2000 Kelley escreveu
e o
USA Today
publicou uma história truculenta completamente inventada do
princípio ao fim, na qual cada dado era absolutamente falso, sobre a
suposta morte de um grupo de imigrantes ilegais que navegavam em
direccção à Florida guiados pela lua até que
naufragaram em meio a feroz tormenta. Para dar mais sabor ao melodrama, o
artigo ia acompanhado pela imagem de uma jovem cubana, identificada como
Jacqueline, fotografada pelo esperto repórter, segundo ele, pouco antes
de a desgraçada rapariga ter perdido a vida arrastada pela fúria
do mar.
As pesquisas do
USA Today
provaram que nesse dia não houve tal tentativa
de migração nem naufrágio algum, que nessa noite
não houve tormenta, o mar estava calmo, nem sequer havia lua e, para
cúmulo, para que fosse falso até o último pormenor,
Jacqueline... não é Jacqueline. Chama-se Yamilet, e aparece na
explicação que agora proporciona o diário norte-americano
viva e saudável, a segurar nas suas mãos a famosa foto que Kelley
lhe tirou... no balcão da sua casa. Tanto ela como o seu esposo, que
vivem nos Estados Unidos para onde viajaram tranquila e legalmente, de
avião, num voo de menos de cinquenta minutos, queixaram-se amargamente
desse embuste grosseiro.
A "tragédia" de Jacqueline não só foi publicada
de forma destacada, era uma grande notícia para os seus editores, num
diário que circula em todo os Estados Unidos. Foi reproduzida
também pelo
Reader's Digest
. Acerca dela Kelley pronunciou solenes
conferências perante incansáveis promotores dos "direitos
humanos" tão sérios e tão honestos como o mais
brilhante correspondente que teve o
USA Today
. Choraram por Jacqueline não poucos norte-americanos. Sua
"morte" trágica foi manipulada pela chusma anexionista de
Miami.
Logo será anunciado o próximo livro do senhor Kelley. Para
promovê-lo dar-lhe-ão espaço os media que hoje se mostram
ofendidos por considerarem uma violação por em dúvida a
sua ética profissional. Será esse o final desta história?
Será reduzido a isso o regresso de Jacqueline ao reino dos vivos, o
sagrado mistério da sua ressurreição?
Apesar de tudo Kelley vive num país onde a mentira e o engano são
praticados como algo natural, dia e noite, desde a Casa Branca até
abaixo, por uma administração que tem alergia mortal à
verdade. Mentiram acerca do pior ataque terrorista já sofrido pelo povo
norte-americano, mentiram perante o mundo inteiro para desencadear o terror e a
guerra por toda a parte e mentem constantemente para perpetuar uma
política insensata. Seguindo o exemplo dos seus dirigentes
políticos, os executivos de grandes empresas adulteram números,
enganam os accionistas e o Estado e enriquecem-se ilegalmente. Os
escândalos de uns e outros inundam as redacções de uma
imprensa que conta, naturalmente, entre os seus membros alguns dos mais
notáveis farsantes, que mentiram sob juramento perante o
mesmíssimo Congresso, como Oliver North e certos assaltantes do
Watergate que agora são orientadores da opinião pública.
Quanto a Cuba, aquilo que fez Kelley é, naturalmente, repugnante. Mas
ele não é um caso único, longe disso. O pobre homem
seguiu uma tradição que, com raríssimas
excepções, foi a norma da imprensa norte-americana desde Primeiro
de Janeiro de 1959. Seria interminável a relação de
bufarinheiros que mentiram e enganaram em relação a Cuba durante
45 anos. Quantas toneladas de papel não gastaram a defender desde os
primeiros dias os torturadores e assassinos do batistismo? Quantas
histórias melodramáticas não dedicaram a
apresentá-los como vítimas inocentes da justiça
revolucionária? Quem recorda os ilustres informadores que descreveram,
em 1961, um irrepetível desembarque pelo "porto" de Bayamo, a
nobre Vila que desde a sua fundação em 1514 sempre esteve bem
longe do mar? Quem transformou em poeta o esbirro batistiano e terrorista
Armando Valladares? Quem inventou a mentira de que estava paralítico?
Alguém pediu desculpas às autoridades parisiences que aguardavam
com uma inútil cadeira de rodas o atlético personagem?
Alguém deu explicações aos ávidos leitores que
ainda esperam o primeiro poema de quem, segundo os media norte-americanos, era
um inspirado e prolífico versejador? São uns poucos exemplos
daquilo que tem sido uma campanha tão desavergonhada quanto prolongada.
E o pior é que não se detem. Ao mesmo tempo que o
USA Today
reconhecia a inadmissível patranha anti-cubana do seu redactor,
circulava a última edição do
Village Voice
que inclui um artigo de um tal Hentoff, outro caluniador profissional. No fim
da sua algaraviada faz-se eco de algo que antes
The Nation
, a respeitável publicação liberal norte-americana,
já havia divulgado. Trata-se de um curioso, mas bastante
insólito, artigo do famoso escritor Arthur Miller, alguém que
já possui o premio Pulitzer.
Há que reconhecer que na sua rápida visita a Cuba Miller
não inventou naufrágios nem "matou" ninguém.
Mas não foi menos delirante. Deixou-se levar, ao que parece, por uma
imaginação febril que o fez dialogar com fantamos e o impediu de
conhecer a realidade.
Miller passeou por Havana, mas não a viu. Só assim se pode
explicar sua descrição da Plaza de Armas, que encontrou ocupada
por instalações governamentais onde empregados oficiais vendem
panfletos de marxismo.
Qualquer um sabe, pois essa praça está sempre cheia de
visitantes, que ali há numerosos cidadãos privados que vendem os
seus livros conforme as regras da oferta e procura. O governo nada tem a ver
com esses livreiros. Tal como em todo mercado de livros usados, ali se podem
encontrar muitos títulos e não faltam os de autores
norte-americanos. Suponho que se os vendedores oferecerm livros marxistas
é porque alguém os procura. Será que deveriam ser
proibidos? Dúvidas sobre o livre mercado ou saudades do macartismo?
Se
The Nation
ou
Village Voice
desejarem ficar na moda não precisam empreender uma
investigação tão minuciosa como a realizada pelo
USA Today
. Bastar-lhes-ia enviar alguem que examinasse os livros e entrevistasse os
seus famosos vendedores. Preferivelmente alguém que entendesse o
castelhano porque nem todos os fantasmas de Havana falam inglês.
O original encontra-se em
http://www.rebelion.org/imperio/040325ra.htm.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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