Brasil
Plano Plurianual: o debate interditado

por Sérgio Miranda [*]

Sérgio Miranda. A votação do Plano Plurianual (PPA), na Comissão Mista de Orçamento, foi o final melancólico de um processo de debate que se iniciou com grande expectativa. Os representantes da oposição fizeram discursos contundentes de crítica à proposta, que escondiam enorme falta de sinceridade. A prova disto é que há poucos dias, no Senado, todos os líderes da oposição cumprimentaram o ministro Antonio Palocci, elogiando a política econômica do governo – que tem por base a geração de superávits primários [1] , em busca do chamado equilíbrio orçamentário. E é justamente essa obtenção do superávit a origem das críticas que faziam ao PPA. Fica claro, assim, o extremo oportunismo do discurso dos partidos de oposição.

A base do governo também demonstrava um certo incômodo com a forma que assumiu o processo de negociação do PPA no Congresso. Mas, levando em conta que a execução do Orçamento de 2004 depende da aprovação do PPA, optou por aprová-lo, mesmo que seu conteúdo não fosse suficientemente debatido.

O PPA DE FERNANDO HENRIQUE

Em 95, primeiro ano do governo FHC, a obrigação constitucional de apresentar o plano plurianual foi motivo para que o presidente expusesse, no Congresso Nacional, as linhas mestras do seu plano econômico, do seu projeto para o país.

Naquelas circunstâncias, como membro da Comissão de Orçamento, escrevi "O Plano do Fundo do Poço", uma análise do plano estratégico do governo Fernando Henrique Cardoso, o PPA 96/99. Apontei claramente que o plano iria fracassar porque partia de premissas falsas. Afirmei que o PPA de Fernando Henrique era a explicitação do Plano Real, que foi montado na esteira da política de abertura da economia brasileira ao mercado internacional adotada pelo governo de Fernando Collor.

Segundo a concepção daquele plano, os dólares que circulavam pelo mundo iriam aportar no Brasil, quando fizéssemos a estabilização da moeda, e seriam a alavanca do nosso desenvolvimento. Quanta falácia! Dizíamos que justamente esses dólares, devido à forma especulativa como eram internalizados, resultariam estéreis, parasitando nossa economia. Resultariam num enorme acúmulo de obrigações externas, como aumento do pagamento de juros, lucros e dividendos. E assim foi.

O PPA de FHC era fundamentalmente um plano para tirar proveito da conjuntura econômica daquele período, determinada por uma enorme liquidez internacional. Nas tabelas apresentadas por aquele plano, a necessidade de financiamento do setor público seria zero, de 1996 a 1999.

Era o plano da estabilidade monetária, do crescimento gerado pelo mercado e do equilíbrio fiscal absoluto. Nas suas previsões, a dívida líquida do setor público total diminuiria, em 1996, de 22,5% do PIB para 15,8%, em 1999. Tudo falsidade. Nenhum desses dados se confirmou. O país estagnou, tivemos outra década perdida. A dívida pública líquida cresceu sem parar, saindo dos 30% do PIB em 1995 para os 58,3% de 2003. Em contrapartida, o dispêndio público estagnou e o investimento do Estado brasileiro reduziu-se drasticamente.

A raiz desses problemas foi a mesma: as elevadas taxas de juros que, segundo o PPA do governo FHC, atrairiam a poupança externa, dariam estabilidade a nossa moeda frente ao dólar e não permitiriam a volta da inflação. Os juros extravagantes, tidos como panacéia para todos os males, acabaram por criar uma enorme dívida pública de curto prazo, geraram altos lucros especulativos e grandes ganhos patrimoniais em títulos públicos. Ao mesmo tempo, inviabilizaram o investimento produtivo e provocaram sobrevalorização da moeda, facilitando assim as importações e dificultando nossas exportações.

O plano de Fernando Henrique Cardoso levou o país para o fundo do poço, como prevíamos: para o baixo crescimento e para o aumento da crise social, demonstrada pelo crescimento do desemprego, da violência e da miséria.

A OPORTUNIDADE PERDIDA

Agora, com o governo Lula, temos uma oportunidade de mudança de rumos para o Brasil. É o momento privilegiado para uma discussão de profundidade sobre o caminho que queremos estabelecer para a economia e a sociedade brasileira, e sobre o papel que o Estado desempenhará nesse processo. O leito natural desse debate seria a apreciação do Plano Plurianual de Investimento. Lamento profundamente que isso não tenha se viabilizado.

Como disse anteriormente, a apresentação do projeto do Plano Plurianual do governo Lula criou uma enorme expectativa. Foram feitas várias assembléias de debate nos Estados; convocou-se a sociedade para discutir os números e o projeto econômico ali delineado. Já quando foi apresentado ao Congresso, em grande solenidade no final de agosto, ouviram-se vozes daqueles que participaram dessas assembléias, protestando, pois muito pouco foi aproveitado das idéias aprovadas nessas reuniões.

Na apresentação do Plano, onde são definidos seus fundamentos, foi feita uma diferenciação, embora um tanto sutil e tênue, da política econômica adotada pelo Ministério da Fazenda. Essas posições representavam o pensamento de quem redigia a proposta do PPA, o Ministério do Planejamento.

Essas diferenças com o Ministério da Fazenda são explicitadas quando se aborda a questão da vulnerabilidade externa e do papel do Estado na política de desenvolvimento. No tocante às políticas sociais, o documento expressa firme defesa da universalização, em contraposição às políticas de focalização pregadas pelo Banco Mundial e defendidas pelo Ministério da Fazenda. Essas sutilezas, esses pontos de vista que apresentavam diferenciações dentro do próprio governo, lamentavelmente não foram trazidos para o debate público no Congresso e na sociedade.

O SUPERÁVIT IMUTÁVEL

É verdade que o senador Roberto Saturnino, relator original do PPA, buscou corrigir algumas distorções na proposta apresentada. Além das questões técnicas que foram ajustadas no seu relatório, salienta-se a inclusão, entre as metas sociais, da duplicação do valor real do salário mínimo, promessa de campanha do presidente Lula. Infelizmente, não se deu conseqüência prática a esta decisão, pois nos programas cujos valores financeiros guardam relação com o salário mínimo, como a Previdência Social, o seguro desemprego e os benefícios de prestação continuada da Lei Orgânica da Assistência Social, não se determinou a previsão financeira consistente com a elevação do salário mínimo.

A principal decisão do relator foi a alteração da meta de superávit primário para os próximos quatro anos. Isso foi encarado pelos condutores da política econômica como heresia, levando o governo a derrotar o relatório Saturnino na Comissão de Orçamento. A intransigência do governo em manter a meta de superávit bloqueou o debate de todas as demais questões, o que mostra bem a prioridade que tal meta assume aos olhos de nossas autoridades econômicas.

Neste caso da redução do percentual da meta do superávit, o senador baseou-se num raciocínio inteiramente correto. O indicador econômico mais importante da consistência da situação fiscal é a queda da relação dívida/PIB; esse tem sido apontado como o objetivo estratégico da política econômica. Essa queda pode acontecer de duas formas: com a diminuição da dívida ou com o aumento do PIB. Como a previsão orçamentária era de crescimento do PIB de 3,5% para 4% já em 2004, poder-se-ia diminuir um pouco o superávit primário, mantendo-se a tendência declinante da relação dívida/PIB. Foi o que fez o senador.

Esta pequena redução do percentual não foi adiante porque, na perspectiva oficial, a queda do superávit, mesmo que pequena, sinalizaria um relaxamento no cumprimento das metas fiscais e que isso abalaria a credibilidade do governo junto aos mercados – mesmo que tal redução, como vimos, mantivesse a tendência de queda na relação dívida/PIB. O que o senador pretendia, com a redução do superávit, era viabilizar o aumento do investimento em infra-estrutura, medida fundamental para a retomada do desenvolvimento. O superávit, ao esterilizar uma massa enorme de recursos extraídos da sociedade através de tributos, leva à paralisia da máquina pública e à diminuição de investimentos, exatamente num momento em que a sucateada infra-estrutura do país tem necessidade absoluta de recursos para construção e manutenção de estradas, portos, pontes, geração de energia etc. Sem falar na necessidade de ampliação dos gastos sociais, que poderia ser viabilizada com esses recursos.

Mas por que isso ocorreu? Por que o Ministério da Fazenda bloqueou a redução do superávit no PPA se o indicador da relação dívida/PIB se manteria? Será porque os mentores da política econômica não acreditam nos índices de crescimento que eles próprios estimam para a economia? Ou revela sua total subserviência aos ditames do mercado financeiro?

A DÍVIDA QUE NÃO PODE SER DEBATIDA

Mas essa discussão não envolve apenas a interdição das decisões sobre a questão do superávit. Ela envolve o impedimento do debate sobre a própria dívida pública.

Até hoje, todos os Plano Plurianuais excluíram o tratamento da dívida pública. Isso se dá em confronto aberto com a Constituição. O parágrafo 1º do artigo 165 da Constituição diz o seguinte: “A lei que instituir o plano plurianual estabelecerá, de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada (...)”.

Ora, a amortização da dívida, em qualquer manual de finanças públicas, é definida como despesa de capital – logo, deveria ser tratada no PPA. Mas houve uma exclusão explícita e proposital desse tema. E por que isso ocorreu? Porque a dívida pública não pode ser discutida no Congresso Nacional. Não pode ser discutida porque não pode ser alterada, como agora ficou evidente quando o Senador Roberto Saturnino procurou mudar as metas de superávit primário. E não pode também ser discutida porque não pode ser comparada com outras despesas públicas, pois assim ficariam evidentes as distorções profundas do destino dos recursos públicos em nosso país. As necessidades sociais têm sido deixadas em segundo plano, porque o que há de mais importante é o serviço da dívida. A dívida se transforma, assim, quase em um fenômeno da natureza, foge do controle e do alcance da sociedade.

Mas a questão do endividamento público merece um debate mais profundo, como pré-condição para uma proposta de desenvolvimento do país. Há uma enorme manipulação de dados e informações sobre este tema. Por exemplo, divulga-se a idéia, que já se tornou senso comum, de que o superávit primário destina-se ao pagamento de juros – e considera-se o pagamento de juros semelhante a outros dispêndios de responsabilidade do Estado.

Mas isso não deve ser encarado dessa forma. A essência da política econômica financeira, ao considerar a estabilização da relação dívida/PIB como questão central, está em função da manutenção do valor real desses ativos financeiros. Superávit não se destina a pagar juros, mas a manter estável a relação dívida/PIB, para dar garantia de que o Estado brasileiro sacrificará os interesses do povo para cumprir os seus compromissos com os detentores de títulos da dívida pública. O superávit garante a solvência da dívida pública, pois aos credores não interessa que a dívida seja saldada, e sim manter a valorização dos seus títulos.

Essa é a essência da política econômica: o que é dívida para o Estado é patrimônio para o setor privado! E foi a partir da adoção das políticas neoliberais que parte cada vez mais considerável da riqueza passou a ser representada por títulos financeiros, especialmente por títulos da dívida pública. Essa riqueza foi assumindo, então, a hegemonia econômica sobre a nação e passou a balizar a própria política econômica, tanto a política fiscal como a política monetária.

Essa prioridade se expressa concretamente no superávit primário. Não como fonte de recursos para pagar os juros da dívida, mas como mecanismo financeiro de manter a solvência da dívida, ou seja, o seu valor enquanto patrimônio privado.

No ano de 2003, por exemplo, enquanto o superávit alcançou 40 mil milhões de reais, o pagamento de juros com recursos do Tesouro, isto é, em dinheiro, foi aproximadamente de apenas 300 milhões de reais.

Poderíamos, na discussão sobre o PPA no Congresso Nacional ter tentado voltar ao superávit primário previsto no acordo do FMI de 2002, de 3,75% do PIB durante os próximos três anos, como propunha o senador Saturnino. Infelizmente, isso não ocorreu e o relatório do senador, que contou com nosso voto, foi derrotado.

O povo brasileiro deve insistir na priorização desse debate. Caso se mantenham a exigência da construção de um projeto de desenvolvimento nacional e do enfrentamento das graves distorções sociais, mais o debate sobre o endividamento público se tornará presente no ambiente político deste país. Afinal, o Estado hoje está servindo principalmente para retirar recursos de forma extorsiva da sociedade através de uma carga tributária insuportável e transferi-los para o setor financeiro . O Estado que queremos tem obrigações nas soluções dos problemas de desenvolvimento, na criação de um projeto nacional que faça a economia crescer, com distribuição de renda e com solução dos graves problemas sociais do país.

MAIS POBRES E MAIS DESIGUAIS

No dia em que se votou o PPA na Comissão Mista de Orçamento, foram divulgadas as contas nacionais pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE). Os números deixaram flagrantes alguns dados da realidade que mereceriam discussão. Em 2003, o Produto Interno Bruto (PIB) medido em dólar fez com que a nossa economia caísse da 12ª para a 15ª posição; e isso aconteceu mesmo com a valorização do real ocorrida durante o ano passado, o que tende a inflar o nosso PIB em dólar.

Desde a década de 80, ocupávamos a posição de 8ª economia do mundo; em 1999, após seis anos de política neoliberal, caímos para 12ª posição, perdendo para o México o lugar centenário de maior economia latino-americana. E mais quatro anos de manutenção dessa política econômica levou o país para a 15ª posição.

O ano passado – em que se consagrou a continuidade da política econômica do governo anterior – foi marcado pela queda do PIB. Depois de muito tempo sem que tivéssemos esse indicador negativo, tivemos, em 2003, uma queda pequena. O custo social desta política econômica também fica evidente: desemprego em alta; queda da renda do trabalho, queda do consumo das famílias, tudo isso demonstrado pelas contas nacionais do IBGE.

Porém, é importante que a sociedade brasileira leve em conta que o custo social da política econômica não é repartido entre os brasileiros de forma equânime. No mesmo período, as empresas de capital aberto tiveram um aumento de seu lucro líquido em 700%, um aumento do lucro operacional de 14%, sem falar nos ganhos fabulosos dos banqueiros. Empresas como a Petrobrás, a CSN, a Companhia Vale do Rio Doce, mineradoras, empresas produtoras de celulose e o agronegócio também tiveram resultados recordes.

Deve-se observar e tirar conseqüências desta evidência: enquanto o PIB caiu, os lucros de determinados setores foram enormes. Quem pagou a conta da política econômica no ano passado foi o emprego, a renda do trabalho, o consumo das famílias.

O professor Márcio Pochmann publicou um livro sobre a distribuição de renda no nosso país e trouxe dados, sem dúvida, espantosos, principalmente sobre o crescimento da concentração de renda.

O estudo divulgado – Atlas da Exclusão Social, volume 3 – mostra que a participação das famílias mais ricas na renda nacional subiu de 20%, em 1980, para 33%, em 2000. Apenas 5 mil famílias (ou 0,01% do total de famílias brasileiras) reúnem um patrimônio que representa 46% do PIB. Ao mesmo tempo, o número de pessoas que vivem em famílias pobres cresceu 18%; e a renda da classe média caiu 17%.

A concentração de renda tem também aspectos regionais. O Sudeste, com São Paulo à frente, possuía 67,2% das famílias ricas, porcentagem que, 20 anos depois, passou para 73,5%. Na região Sul, o número de famílias ricas caiu de 13,7% para 10% e, no Nordeste, de 9,4% para 7,2%. Esses dados, que refletem o agravamento da crise social do país, deveriam ter sido o centro do debate sobre o PPA. Infelizmente, isso não ocorreu.


[*] Economista, deputado federal do PCdoB por Minas Gerais.

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Nota de resistir.info: O conceito de superávit primário é habitualmente entendido como: (Total da arrecadação fiscal) - (Despesas correntes e de capital das autarquias municipais, estaduais, federal e empresas estatais). O superávit assim obtido destina-se a dar tranquilidade aos credores do Brasil (Wall Street) e a pagar o serviço da dívida (principal+juros).
A exigência feita pelo FMI fora de que o Superávit primário brasileiro não excedesse os 3,75% do PIB. O governo Lula esmerou-se no seu cumprimento e resolveu ir além desta meta, fixando a porcentagem em 4,25%.


O original encontra-se em http://www.portoalegre2003.org/

Este artigo encontra-se em http://resistir.info .
20/Abr/04