Brasil
Plano Plurianual: o debate interditado
A votação do Plano Plurianual (PPA), na Comissão Mista de
Orçamento, foi o final melancólico de um processo de debate que
se iniciou com grande expectativa. Os representantes da oposição
fizeram discursos contundentes de crítica à proposta, que
escondiam enorme falta de sinceridade. A prova disto é que há
poucos dias, no Senado, todos os líderes da oposição
cumprimentaram o ministro Antonio Palocci, elogiando a política
econômica do governo que tem por base a geração de
superávits primários
[1]
, em busca do chamado equilíbrio
orçamentário. E é justamente essa obtenção
do superávit a origem das críticas que faziam ao PPA. Fica claro,
assim, o extremo oportunismo do discurso dos partidos de oposição.
A base do governo também demonstrava um certo incômodo com a forma
que assumiu o processo de negociação do PPA no Congresso. Mas,
levando em conta que a execução do Orçamento de 2004
depende da aprovação do PPA, optou por aprová-lo, mesmo
que seu conteúdo não fosse suficientemente debatido.
O PPA DE FERNANDO HENRIQUE
Em 95, primeiro ano do governo FHC, a obrigação constitucional de
apresentar o plano plurianual foi motivo para que o presidente expusesse, no
Congresso Nacional, as linhas mestras do seu plano econômico, do seu
projeto para o país.
Naquelas circunstâncias, como membro da Comissão de
Orçamento, escrevi "O Plano do Fundo do Poço", uma
análise do plano estratégico do governo Fernando Henrique
Cardoso, o PPA 96/99. Apontei claramente que o plano iria fracassar porque
partia de premissas falsas. Afirmei que o PPA de Fernando Henrique era a
explicitação do Plano Real, que foi montado na esteira da
política de abertura da economia brasileira ao mercado internacional
adotada pelo governo de Fernando Collor.
Segundo a concepção daquele plano, os dólares que
circulavam pelo mundo iriam aportar no Brasil, quando fizéssemos a
estabilização da moeda, e seriam a alavanca do nosso
desenvolvimento. Quanta falácia! Dizíamos que justamente esses
dólares, devido à forma especulativa como eram internalizados,
resultariam estéreis, parasitando nossa economia. Resultariam num enorme
acúmulo de obrigações externas, como aumento do pagamento
de juros, lucros e dividendos. E assim foi.
O PPA de FHC era fundamentalmente um plano para tirar proveito da conjuntura
econômica daquele período, determinada por uma enorme liquidez
internacional. Nas tabelas apresentadas por aquele plano, a necessidade de
financiamento do setor público seria zero, de 1996 a 1999.
Era o plano da estabilidade monetária, do crescimento gerado pelo
mercado e do equilíbrio fiscal absoluto. Nas suas previsões, a
dívida líquida do setor público total diminuiria, em 1996,
de 22,5% do PIB para 15,8%, em 1999. Tudo falsidade. Nenhum desses dados se
confirmou. O país estagnou, tivemos outra década perdida. A
dívida pública líquida cresceu sem parar, saindo dos 30%
do PIB em 1995 para os 58,3% de 2003. Em contrapartida, o dispêndio
público estagnou e o investimento do Estado brasileiro reduziu-se
drasticamente.
A raiz desses problemas foi a mesma: as elevadas taxas de juros que, segundo o
PPA do governo FHC, atrairiam a poupança externa, dariam estabilidade a
nossa moeda frente ao dólar e não permitiriam a volta da
inflação. Os juros extravagantes, tidos como panacéia
para todos os males, acabaram por criar uma enorme dívida pública
de curto prazo, geraram altos lucros especulativos e grandes ganhos
patrimoniais em títulos públicos. Ao mesmo tempo, inviabilizaram
o investimento produtivo e provocaram sobrevalorização da moeda,
facilitando assim as importações e dificultando nossas
exportações.
O plano de Fernando Henrique Cardoso levou o país para o fundo do
poço, como prevíamos: para o baixo crescimento e para o aumento
da crise social, demonstrada pelo crescimento do desemprego, da violência
e da miséria.
A OPORTUNIDADE PERDIDA
Agora, com o governo Lula, temos uma oportunidade de mudança de rumos
para o Brasil. É o momento privilegiado para uma discussão de
profundidade sobre o caminho que queremos estabelecer para a economia e a
sociedade brasileira, e sobre o papel que o Estado desempenhará nesse
processo. O leito natural desse debate seria a apreciação do
Plano Plurianual de Investimento. Lamento profundamente que isso não
tenha se viabilizado.
Como disse anteriormente, a apresentação do projeto do Plano
Plurianual do governo Lula criou uma enorme expectativa. Foram feitas
várias assembléias de debate nos Estados; convocou-se a sociedade
para discutir os números e o projeto econômico ali delineado.
Já quando foi apresentado ao Congresso, em grande solenidade no final de
agosto, ouviram-se vozes daqueles que participaram dessas assembléias,
protestando, pois muito pouco foi aproveitado das idéias aprovadas
nessas reuniões.
Na apresentação do Plano, onde são definidos seus
fundamentos, foi feita uma diferenciação, embora um tanto sutil e
tênue, da política econômica adotada pelo Ministério
da Fazenda. Essas posições representavam o pensamento de quem
redigia a proposta do PPA, o Ministério do Planejamento.
Essas diferenças com o Ministério da Fazenda são
explicitadas quando se aborda a questão da vulnerabilidade externa e do
papel do Estado na política de desenvolvimento. No tocante às
políticas sociais, o documento expressa firme defesa da
universalização, em contraposição às
políticas de focalização pregadas pelo Banco Mundial e
defendidas pelo Ministério da Fazenda. Essas sutilezas, esses pontos de
vista que apresentavam diferenciações dentro do próprio
governo, lamentavelmente não foram trazidos para o debate público
no Congresso e na sociedade.
O SUPERÁVIT IMUTÁVEL
É verdade que o senador Roberto Saturnino, relator original do PPA,
buscou corrigir algumas distorções na proposta apresentada.
Além das questões técnicas que foram ajustadas no seu
relatório, salienta-se a inclusão, entre as metas sociais, da
duplicação do valor real do salário mínimo,
promessa de campanha do presidente Lula. Infelizmente, não se deu
conseqüência prática a esta decisão, pois nos
programas cujos valores financeiros guardam relação com o
salário mínimo, como a Previdência Social, o seguro
desemprego e os benefícios de prestação continuada da Lei
Orgânica da Assistência Social, não se determinou a
previsão financeira consistente com a elevação do
salário mínimo.
A principal decisão do relator foi a alteração da meta de
superávit primário para os próximos quatro anos. Isso foi
encarado pelos condutores da política econômica como heresia,
levando o governo a derrotar o relatório Saturnino na Comissão de
Orçamento. A intransigência do governo em manter a meta de
superávit bloqueou o debate de todas as demais questões, o que
mostra bem a prioridade que tal meta assume aos olhos de nossas autoridades
econômicas.
Neste caso da redução do percentual da meta do superávit,
o senador baseou-se num raciocínio inteiramente correto. O indicador
econômico mais importante da consistência da situação
fiscal é a queda da relação dívida/PIB; esse tem
sido apontado como o objetivo estratégico da política
econômica. Essa queda pode acontecer de duas formas: com a
diminuição da dívida ou com o aumento do PIB. Como a
previsão orçamentária era de crescimento do PIB de 3,5%
para 4% já em 2004, poder-se-ia diminuir um pouco o superávit
primário, mantendo-se a tendência declinante da
relação dívida/PIB. Foi o que fez o senador.
Esta pequena redução do percentual não foi adiante porque,
na perspectiva oficial, a queda do superávit, mesmo que pequena,
sinalizaria um relaxamento no cumprimento das metas fiscais e que isso abalaria
a credibilidade do governo junto aos mercados mesmo que tal
redução, como vimos, mantivesse a tendência de queda na
relação dívida/PIB. O que o senador pretendia, com a
redução do superávit, era viabilizar o aumento do
investimento em infra-estrutura, medida fundamental para a retomada do
desenvolvimento. O superávit, ao esterilizar uma massa enorme de
recursos extraídos da sociedade através de tributos, leva
à paralisia da máquina pública e à
diminuição de investimentos, exatamente num momento em que a
sucateada infra-estrutura do país tem necessidade absoluta de recursos
para construção e manutenção de estradas, portos,
pontes, geração de energia etc. Sem falar na necessidade de
ampliação dos gastos sociais, que poderia ser viabilizada com
esses recursos.
Mas por que isso ocorreu? Por que o Ministério da Fazenda bloqueou a
redução do superávit no PPA se o indicador da
relação dívida/PIB se manteria? Será porque os
mentores da política econômica não acreditam nos
índices de crescimento que eles próprios estimam para a economia?
Ou revela sua total subserviência aos ditames do mercado financeiro?
A DÍVIDA QUE NÃO PODE SER DEBATIDA
Mas essa discussão não envolve apenas a interdição
das decisões sobre a questão do superávit. Ela envolve o
impedimento do debate sobre a própria dívida pública.
Até hoje, todos os Plano Plurianuais excluíram o tratamento da
dívida pública. Isso se dá em confronto aberto com a
Constituição. O parágrafo 1º do artigo 165 da
Constituição diz o seguinte: A lei que instituir o plano
plurianual estabelecerá, de forma regionalizada, as diretrizes,
objetivos e metas da administração pública federal para as
despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos
programas de duração continuada (...).
Ora, a amortização da dívida, em qualquer manual de
finanças públicas, é definida como despesa de capital
logo, deveria ser tratada no PPA. Mas houve uma exclusão
explícita e proposital desse tema. E por que isso ocorreu? Porque a
dívida pública não pode ser discutida no Congresso
Nacional. Não pode ser discutida porque não pode ser alterada,
como agora ficou evidente quando o Senador Roberto Saturnino procurou mudar as
metas de superávit primário. E não pode também ser
discutida porque não pode ser comparada com outras despesas
públicas, pois assim ficariam evidentes as distorções
profundas do destino dos recursos públicos em nosso país. As
necessidades sociais têm sido deixadas em segundo plano, porque o que
há de mais importante é o serviço da dívida. A
dívida se transforma, assim, quase em um fenômeno da natureza,
foge do controle e do alcance da sociedade.
Mas a questão do endividamento público merece um debate mais
profundo, como pré-condição para uma proposta de
desenvolvimento do país. Há uma enorme manipulação
de dados e informações sobre este tema. Por exemplo, divulga-se a
idéia, que já se tornou senso comum, de que o superávit
primário destina-se ao pagamento de juros e considera-se o
pagamento de juros semelhante a outros dispêndios de responsabilidade do
Estado.
Mas isso não deve ser encarado dessa forma. A essência da
política econômica financeira, ao considerar a
estabilização da relação dívida/PIB como
questão central, está em função da
manutenção do valor real desses ativos financeiros.
Superávit não se destina a pagar juros, mas a manter
estável a relação dívida/PIB, para dar garantia de
que o Estado brasileiro sacrificará os interesses do povo para cumprir
os seus compromissos com os detentores de títulos da dívida
pública. O superávit garante a solvência da dívida
pública, pois aos credores não interessa que a dívida seja
saldada, e sim manter a valorização dos seus títulos.
Essa é a essência da política econômica: o que
é dívida para o Estado é patrimônio para o setor
privado! E foi a partir da adoção das políticas
neoliberais que parte cada vez mais considerável da riqueza passou a ser
representada por títulos financeiros, especialmente por títulos
da dívida pública. Essa riqueza foi assumindo, então, a
hegemonia econômica sobre a nação e passou a balizar a
própria política econômica, tanto a política fiscal
como a política monetária.
Essa prioridade se expressa concretamente no superávit primário.
Não como fonte de recursos para pagar os juros da dívida, mas
como mecanismo financeiro de manter a solvência da dívida, ou
seja, o seu valor enquanto patrimônio privado.
No ano de 2003, por exemplo, enquanto o superávit alcançou 40 mil
milhões de reais, o pagamento de juros com recursos do Tesouro, isto
é, em dinheiro, foi aproximadamente de apenas 300 milhões de
reais.
Poderíamos, na discussão sobre o PPA no Congresso Nacional ter
tentado voltar ao superávit primário previsto no acordo do FMI de
2002, de 3,75% do PIB durante os próximos três anos, como propunha
o senador Saturnino. Infelizmente, isso não ocorreu e o relatório
do senador, que contou com nosso voto, foi derrotado.
O povo brasileiro deve insistir na priorização desse debate. Caso
se mantenham a exigência da construção de um projeto de
desenvolvimento nacional e do enfrentamento das graves distorções
sociais, mais o debate sobre o endividamento público se tornará
presente no ambiente político deste país. Afinal,
o Estado hoje está servindo principalmente para retirar recursos de
forma extorsiva da sociedade através de uma carga tributária
insuportável e transferi-los para o setor financeiro
. O Estado que queremos tem obrigações nas soluções
dos problemas de desenvolvimento, na criação de um projeto
nacional que faça a economia crescer, com distribuição de
renda e com solução dos graves problemas sociais do país.
MAIS POBRES E MAIS DESIGUAIS
No dia em que se votou o PPA na Comissão Mista de Orçamento,
foram divulgadas as contas nacionais pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatísticas (IBGE). Os números deixaram flagrantes alguns dados
da realidade que mereceriam discussão. Em 2003, o Produto Interno Bruto
(PIB) medido em dólar fez com que a nossa economia caísse da
12ª para a 15ª posição; e isso aconteceu mesmo com a
valorização do real ocorrida durante o ano passado, o que tende a
inflar o nosso PIB em dólar.
Desde a década de 80, ocupávamos a posição de
8ª economia do mundo; em 1999, após seis anos de política
neoliberal, caímos para 12ª posição, perdendo para o
México o lugar centenário de maior economia latino-americana. E
mais quatro anos de manutenção dessa política
econômica levou o país para a 15ª posição.
O ano passado em que se consagrou a continuidade da política
econômica do governo anterior foi marcado pela queda do PIB.
Depois de muito tempo sem que tivéssemos esse indicador negativo,
tivemos, em 2003, uma queda pequena. O custo social desta política
econômica também fica evidente: desemprego em alta; queda da renda
do trabalho, queda do consumo das famílias, tudo isso demonstrado pelas
contas nacionais do IBGE.
Porém, é importante que a sociedade brasileira leve em conta que
o custo social da política econômica não é repartido
entre os brasileiros de forma equânime. No mesmo período, as
empresas de capital aberto tiveram um aumento de seu lucro líquido em
700%, um aumento do lucro operacional de 14%, sem falar nos ganhos fabulosos
dos banqueiros. Empresas como a Petrobrás, a CSN, a Companhia Vale do
Rio Doce, mineradoras, empresas produtoras de celulose e o agronegócio
também tiveram resultados recordes.
Deve-se observar e tirar conseqüências desta evidência:
enquanto o PIB caiu, os lucros de determinados setores foram enormes. Quem
pagou a conta da política econômica no ano passado foi o emprego,
a renda do trabalho, o consumo das famílias.
O professor Márcio Pochmann publicou um livro sobre a
distribuição de renda no nosso país e trouxe dados, sem
dúvida, espantosos, principalmente sobre o crescimento da
concentração de renda.
O estudo divulgado Atlas da Exclusão Social, volume 3
mostra que a participação das famílias mais ricas na renda
nacional subiu de 20%, em 1980, para 33%, em 2000. Apenas 5 mil famílias
(ou 0,01% do total de famílias brasileiras) reúnem um
patrimônio que representa 46% do PIB. Ao mesmo tempo, o número de
pessoas que vivem em famílias pobres cresceu 18%; e a renda da classe
média caiu 17%.
A concentração de renda tem também aspectos regionais. O
Sudeste, com São Paulo à frente, possuía 67,2% das
famílias ricas, porcentagem que, 20 anos depois, passou para 73,5%. Na
região Sul, o número de famílias ricas caiu de 13,7% para
10% e, no Nordeste, de 9,4% para 7,2%. Esses dados, que refletem o agravamento
da crise social do país, deveriam ter sido o centro do debate sobre o
PPA. Infelizmente, isso não ocorreu.
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[*]
Economista, deputado federal do PCdoB por Minas Gerais.
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Nota de resistir.info:
O conceito de superávit primário é habitualmente entendido como:
(Total da arrecadação fiscal) - (Despesas correntes e de capital das autarquias
municipais, estaduais, federal e empresas estatais). O superávit assim obtido
destina-se a dar tranquilidade aos credores do Brasil (Wall Street) e a pagar o
serviço da dívida (principal+juros).
A exigência feita pelo FMI fora de que o Superávit primário brasileiro não
excedesse os 3,75% do PIB. O governo Lula esmerou-se no seu cumprimento e
resolveu ir além desta meta, fixando a porcentagem em 4,25%.
O original encontra-se em
http://www.portoalegre2003.org/
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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